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Recepção de hábito

Este sábado, 28 de setembro, receberam o hábito dos Arautos do Evangelho, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, 21 membros provenientes dos seguintes estados do Brasil: Bahia, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. E das seguintes nações: Moçambique, Índia, Canadá, Colômbia, Paraguai e Portugal.

Tanto a Celebração Eucarística quanto a concessão do hábito foram presididas pelo nosso fundador, Mons. João Scognamiglio Clá Dias, o qual dirigiu aos recipiendários palavras de encorajamento para levarem com amor até o fim das suas vidas esse manto que os recobriu, símbolo da bondade e do afeto de Nossa Senhora, e a perseverarem nos propósitos de entrega ao serviço de Deus e da sua Igreja.

Foi mais um passo considerável dado por estes nossos irmãos na Fé, para cumprirem a vocação que Maria Santíssima lhes deu, neste momento histórico crucial: anunciarem as verdades do Evangelho num mundo que parece esquecer-se cada vez mais delas. Rezemos por estes Arautos do Evangelho, a fim de que abundantes graças de Deus lhes proporcionem as forças para serem inteiramente fiéis ao seu chamado!

Fotos: João Paulo Rodrigues

 

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A castidade consagrada II – (continuação)

A virtude da castidade é como um valioso objeto de cristal, muito delicado, o qual deve ser carregado com extremo cuidado, para poder conservar-se intacto. Inúmeros recursos naturais e sobrenaturais existem ao nosso alcance, com vistas a resguardar a virtude angélica. Detenhamo-nos, pois, na consideração de alguns.

 Disciplinar os sentidos. A finalidade da mortificação dos sentidos é guarnecer as “muralhas” da nossa “fortaleza” contra o inimigo infernal, o qual ronda “como um leão que ruge buscando a quem devorar” (1 Pe 5, 8).

1o Colocar limites ao olhar exterior e ao interior é um dos mais eficazes meios para conservar a pureza, pois a “vista excita os desejos dos insensatos” (Sb 15, 5) e a imaginação é a “louca da casa” – na expressão de Santa Teresa de Jesus[1]. Se não formos vigilantes, a tentação pode assaltar-nos quase despercebidamente, projetando na nossa “tela interior” cenas que nos passaram pela vista, embora não lhes tenhamos dado atenção. O venerável patriarca Jó, bem conhecendo a natureza humana, fizera um pacto com seus olhos de jamais fitar algo que pudesse ser-lhe motivo de queda (Cf. 31, 1). E o Espírito Santo inspirou o autor sagrado do Eclesiástico a escrever uma série de conselhos, a fim de prevenir-nos acerca do descontrole das vistas, entre os quais consta este: “Não lances os olhos daqui e dali pelas ruas da cidade, não vagueies pelos caminhos” (Eclo 9, 7). A desocupação também é inimiga da castidade. Quem permanece desocupado aprende em sua imaginação a fazer o mal, porque “a ociosidade ensina muita malícia” (Eclo 33-29). Portanto, jamais nos deixemos tomar por sonhos de olhos abertos, nos quais facilmente se alberga o Maligno.

 2o A língua e o ouvido mortificam-se pela vigilância nas conversas, não só no que diz respeito a matérias ilícitas evidentemente, pois “disso nem se faça menção entre vós, como convém a santos” (Ef 5, 3), mas também, tendo humildade no convívio, sabendo ceder a palavra e ouvir os demais, adaptando-se à vontade alheia e evitando os excessos de curiosidade, porque  quem “refreia a língua […] é um homem perfeito, capaz de refrear todo o seu corpo. Quando pomos o freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam,…

governamos também todo o seu corpo. Vede também os navios: por grandes que sejam e embora agitados por ventos impetuosos, são governados com um pequeno leme à vontade do piloto. Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode gloriar-se de grandes coisas. Considerai como uma pequena chama pode incendiar uma grande floresta! Também a língua é um fogo, um mundo de iniquidade. A língua está entre os nossos membros e contamina todo o corpo; e sendo inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa vida. […] Não convém, meus irmãos, que seja assim” (Tg 1, 27; 3, 2-6. 10).

3o O paladar e o olfato também devem ser refreados, quanto ao abuso dos prazeres que deles provêm. A alimentação é um bem, e até um ótimo meio para louvar a Deus pelas maravilhas contidas na Criação. Igualmente, as fragrâncias extraídas da vegetação podem elevar os ambientes e, em consequência, os espíritos. Sem embargo, nunca devem se tornar motivo de deleites mundanos, pois “não são mais que sombra do que há de vir” (Cl 2, 17). Servir-se com intemperança desses recursos pode ser prejudicial para a guarda da castidade, uma vez que o excesso deles amolece o corpo e, por conseguinte, a vontade.

“São Francisco de Assis chamava ao seu corpo ‘irmão burro’: ‘irmão’ porque era seu companheiro de viagem, mas ‘burro’ porque sabia que lhe era obediente. Se concederes tudo ao corpo, bem depressa o farás senhor de ti”[2]. Ceder aos instintos frequentemente não significa acalmá-los, mas ao contrário, pode excitá-los ainda mais. Não permitamos, pois, que o “burro” passe a nos governar! Imitemos o exemplo do Apóstolo: “Castigo o meu corpo e o mantenho na servidão” (1 Cor 9, 27). Sem contar que a sobriedade é um dos melhores “médicos” de toda a História, antigamente muito “consultado” pelos longevos ermitãos do deserto, por isso, pondera o adágio latino: “modicus cibi, medicus sibi[3], quem é módico no alimento é médico de si mesmo.

4o “O tato é um sentido especialmente perigoso”[4]. Para discipliná-lo o batizado deve revestir-se de todo pudor privado e público, a fim de prever os perigos, precaver-se e evitá-los. Todos os atos, especialmente quando se está a sós, devem ser permeados de zelo pela integridade própria ao “templo do Espírito Santo” (1 Cor 6, 19) que é o corpo. Quanto nos agrada entrar numa igreja limpa, ordenada e sacral, digna da presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Basílica Nossa Senhora do Rosário – Arautos do Evangelho – Thabor

Pois bem, não contristemos o Espírito Santo (Cf. 1 Ef 4, 30), profanando o lugar de sua habitação com atitudes indecorosas: é preciso aprimorar o nosso templo, deixá-lo pulcro e sagrado como merece. Para isso, cultivemos uma ordem exímia em nosso recinto de repouso noturno e uma limpeza exemplar na apresentação pessoal, porque “o cuidado exterior leva a premunir-nos contra tudo o que possa roubar a pureza da alma”[5].

Mortifiquemos a carne, não cedendo aos horrendos prazeres da preguiça. De manhã “despertai, como convém, e não pequeis!” (1 Cor 15, 34); levantemo-nos imediatamente após acordar, não dando ocasião ao diabo de nos tentar. Privemo-nos das comodidades excessivas e, se nos acontece de depararmo-nos com algo que possa despertar os instintos da carne, afastemo-nos imediatamente da ocasião, pois “quem ama o perigo nele perecerá” (Eclo 3, 27). O melhor modo de triunfar nesses momentos não é enfrentar as tentações, mas fugir delas, como afirmava São Jerônimo: “Fujo para não ser vencido”[6].

 “Vigiai…” (Mt 26, 41). Nosso trato com os demais deve ser sempre respeitoso e até cerimonioso, nunca permitindo que se torne espontâneo, trivial ou indisciplinado. Cuidado com as amizades, pois “más companhias corrompem bons costumes” (1 Cor 15, 33)! Pela castidade perfeita, oferecemos o nosso coração ao Criador, amando ao próximo por puro amor a Deus, “o amor em sua forma mais elevada, ou seja, […] sem participação alguma com as criaturas no plano meramente natural”[7]. Muitas vezes – dizia São Francisco de Sales – pensamos estimar uma pessoa por amor sobrenatural, mas, na realidade, fazemo-lo por amor a nós mesmos, pela satisfação e atrativo que nos provoca o trato com ela[8].

Eis alguns dos sintomas que ajudam a desmascarar as afeições desregradas: “falar pouco das coisas de Deus e muito da mútua amizade; louvar-se, adular-se, ser indulgentes reciprocamente; queixar-se amargamente das correções dos superiores, dos obstáculos que lhes põem para andar juntos, das suspeitas que parecem manifestar; na ausência da pessoa amiga, experimentar intranquilidade e tristeza; ter distrações na oração por causa dela; encomendá-la a Deus com fervor extraordinário; ter a sua imagem gravada na alma; pensar nela dia e noite, e em sonhos ainda; perguntar com muito interesse onde está, o que faz, quando virá, se tem amizade com outra pessoa”[9].

Depois de anos de experiência, São João Bosco disse ter-se convencido de que esse gravíssimo perigo é contínuo, e alcunhou-o com o nome de “amizades particulares”. Mais tarde, porém, quis catalogá-lo como a “peste das comunidades”[10]. Uma frase atribuída a Santo Agostinho descreve o percurso que pode traçar quem se deixa levar por Satanás, pelo sinuoso caminho das amizades particulares: “O amor espiritual se torna afetuoso, o afetuoso obsequioso, o obsequioso familiar e o familiar carnal”[11]. Nessa matéria, como em muitas outras, é preciso fazer-se violência e cortar pela raiz o que possa tornar-se motivo de desvio do amor exclusivo a Deus, porque o Céu “são os violentos que o conquistam” (Mt 11, 12).

Prestemos, pois, atenção aos conselhos da Escritura: “Filhinhos, que ninguém vos desencaminhe” (1 Jo 3, 7); “Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado na Geena. E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo inteiro seja atirado na Geena” (Mt 5, 29-30). Especialmente, São Paulo exorta os consagrados a se mostrarem íntegros em seu proceder, “para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tt 2, 8).

♦ “… E orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41). Santo Agostinho, célebre pela sua impressionante conversão, compôs um tocante “diálogo” com a virtude angélica, externando nele a sua terrível luta para adquiri-la: “a castidade, como que rindo de mim com um gracioso sorriso, o qual me convidava a segui-la, parecia dizer-me: ‘Então, não poderás tu aquilo que puderam e podem todos esses e essas [pessoas castas]? Por ventura o que eles podem, provém das suas próprias forças ou daquelas que a graça de seu Deus e Senhor lhes comunicou? O Senhor seu Deus concedeu-lhes continência, pois eu sou dádiva d’Ele. Por que queres apoiar-te em tuas próprias forças, se elas não podem te sustentar nem dar-te firmeza alguma? Atira-te com confiança nos braços do Senhor, e não temas, porque nunca se afastará deixando-te cair. Atira-te seguro e confiante, que Ele te receberá em seus braços e sanará todos os teus males’. Eu estava muito envergonhado, porque ainda ouvia os murmúrios daquelas futilidades [da impureza], as quais mantinham-me atônito e indeciso. Então, novamente a castidade parecia dizer-me: ‘Faz-te surdo às imundas da tua concupiscência, porque assim ela ficará totalmente amortecida. Ela te promete deleites, mas não podem comparar-se com os que encontrarás na lei de teu Deus e Senhor’”[12].

E Santo Agostinho encontrou o único meio capaz de dar-lhe a pureza: “[Eu] julgava que a castidade havia de se obter com as próprias forças, e persuadia-me de que não as tinha. Sendo tão néscio, ignorava, como está escritura, que ninguém pode ser casto se Vós não lhe dais essa virtude’ (Sb 8, 21; Vulgata). E, certamente, a teríeis concedido a mim, se ferisse os teus ouvidos com os gemidos íntimos de meu coração, e com firme confiança tivesse posto em Vós todos os meus cuidados[13].

Imagem de Nossa Senhora de Fátima – Basílica dos Arautos do Evangelho – Thabor

Com efeito, mesmo utilizando-nos dos recursos para conservar imaculada a castidade, todos se mostrarão insuficientes, caso nos falte o principal: a oração. Por meio dela devemos implorar sempre o auxílio divino, pela intercessão da Mãe de toda pureza e “Mestra da virgindade”[14], Maria Santíssima. É indispensável também frequentar os Sacramentos, meios seguros para obter a Graça, especialmente a Eucaristia, pão dos Anjos (Cf. Sb 16, 20), “vinho do Novo Testamento que faz germinar virgens”[15], baluarte da castidade e melhor “remédio contra a sensualidade”[16], e o Sacramento da Penitência, o qual lança por terra os planos do demônio, quando as más solicitações que ele sugeria em nosso interior são externadas ao confessor: “tentação descoberta é tentação vencida”[17].

Mas o tentador não permanece de braços cruzados… Ele devolve, na fila da Confissão, o que procurou retirar no momento da tentação: a vergonha. São João Bosco conclamava os seus alunos a acorrerem ao sacramento da misericórdia divina, com presteza e integridade de espírito: “Asseguro-vos, queridos jovens, que a mão me treme ante a consideração do grande número de cristãos que se encaminham à eterna condenação, unicamente por ter calado ou por não ter exposto sinceramente na Confissão determinadas faltas. Se por casualidade algum de vós, ao revistar a sua vida passada, dá-se conta de que ocultou voluntariamente algum pecado, ou simplesmente retém dúvidas sobre a validez de alguma Confissão, eu lhe diria: ‘Amigo meu, por amor a Jesus Cristo e ao precioso Sangue que derramou para salvar-te, repara, suplico-te, tua consciência, a primeira vez que fores confessar-te; tudo isso que te inquieta, manifesta-o como se estivesses a ponto de morrer. E se não sabes por onde começar, dize simplesmente ao confessor que há algo na tua vida passada que te perturba. Isso será suficiente[18].

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Apud CANALS NAVARRETE, Salvador. Ascética meditada. Madrid: Rialp, 1997, p. 117.

[2] TÓTH, Tihamer. Juventude radiosa. Tradução de Joaquim M. Lourenço. 5 ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1967, p. 180.

[3] TÓTH. Compendio de Teología ascética y mística. Tradução de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960. p. 180-181.

[4] TANQUEREY. Op. Cit., p. 717.

[5] TÓTH. Op. Cit., p. 168.

[6] Apud ROYO MARÍN, Antonio. La vida religiosa. 2 ed. Madrid: B.A.C, 1968, p. 321.

[7] Idem, p. 283.

[8] Cf. TANQUEREY. Op. Cit., p. 719.

[9] VALUY,  Benoit. Vertus religieuse: Le directoire du prête. Paris: Tralin, 1913, p. 73-74, apud Tanquerey. Op. Cit., p. 720.

[10] SÃO JOÃO BOSCO. Reglas o constituciones del Instituto de las Hijas de María Auxiliaodora. n. 111. In: Obras fundamentales. Juan Canals Pujol e Antonio Martinez Azcona (diretores da edição). 3 ed. Madrid: B.A.C., 1995, p. 722.

[11] Apud TANQUEREY. Op. Cit., p. 719.

[12] SANTO AGOSTINHO. Confissões VIII, 11, 27.

[13] SANTO AGOSTINHO. Confissões VI, 11, 20.

[14] SANTO AMBRÓSIO, apud ROYO MARÍN. Op. Cit., p. 323.

[15] DARRAS, Joseph Epiphane. Historia de Nuestro Señor Jesucristo: exposición sobre los Santos Evangelios. Madrid: Gaspar & Roig, 1865, (c. IV, §. 5).

[16] LEÃO XIII, apud Pio xii. Sacra virginitas. 25 mar. 1954.

[17] TANQUEREY. Op. Cit., p. 715.

[18] SÃO JOÃO BOSCO. Apuntes biográficos del joven Miguel Magone: alumno del oratório de San Francisco de Sales. 3 ed. Turín: [s. n.], 1880. In: Obras fundamentales. Op. Cit., p. 234.

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A castidade consagrada I

A invenção do balão, no ano de 1793, foi um acontecimento mundial. Era quase impossível acreditar que um objeto de tal tamanho pudesse vencer a implacável lei da gravidade, voando sem amarras, peregrinando pelos ares, permitindo contemplar panoramas desde alturas inimagináveis… Sim, até lá conseguiu chegar o engenho humano! Ora, tudo na Criação tem uma finalidade, não somente material, mas também no plano espiritual e simbólico, pois o Universo saiu das mãos de um único Ser, infinitamente inteligente e perfeito. Não era possível existirem essas leis sem que contivessem sábias analogias em relação a criaturas superiores.

Com efeito, a tendência de os objetos caírem talvez seja uma imagem desejada por Deus, para dar a entender ao homem o quanto a sua natureza, depois do Pecado Original, tornou-se propensa à queda: “à semelhança de nosso corpo, padecem as almas de uma espécie de lei da gravidade espiritual por onde nos sentimos atraídos para o mais baixo, o mais trivial, o que nos exige menos esforço”.[1] Por outro lado, a mencionada lei física capaz de vencer a gravidade, também é imagem de uma realidade superior, a qual foi dada a conhecer aos homens muito antes do descobrimento do balão. Nosso Senhor Jesus Cristo foi o grande “descobridor”, ou melhor, o portador de uma nova lei, capaz de retirar-nos do abismo ao qual o pecado nos atirara: a Lei da Graça.[2] Ela é capaz de elevar as almas a altitudes inatingíveis pelo esforço natural, fazendo-as ganhar a batalha contra as inclinações que continuamente as arrastam para o mal.

A Graça é o remédio apropriado para corrigir em nós o desregramento das paixões, sobretudo a “concupiscência da carne” (1 Jo 2, 16), a qual leva a humanidade a ofender a Deus com maior frequência. Cristo veio consagrando dois caminhos que regulam a veemência desse instinto: o Sacramento do Matrimônio e a castidade consagrada. Em relação à segunda, o Divino Mestre afirmou ser um estado de vida reservado para poucos e, assim, nem todos conseguem compreendê-lo, “mas somente aqueles a quem é concedido” (Mt 19, 11). Os que o abraçam “por amor do Reino dos Céus” (Mt 19, 12), prenunciam nesta Terra a Bem-aventurança celeste, por isso, esse estado recebe o nome de celibato, termo que visa expressar certa participação na felicidade do Céu, segundo a etimologia dada pelo historiador romano Julius Valerianus: caeli beatus.[3]

A virtude da castidade visa reprimir “tudo quanto há de desordenado nos prazeres voluptuosos”,[4] os quais são moralmente ilícitos quando buscados por si mesmos,[5] porque eles só existem com vistas a um fim principal: “perpetuar a raça humana, transmitindo a vida pelo uso legítimo do matrimônio. Fora dele, toda luxúria é estritamente proibida”.[6] Ora, a vocação para a castidade consagrada pede uma doação completa, através desse “vínculo sagrado”,[7] o religioso entrega a Deus o corpo com todas as suas faculdades, oferece-se em holocausto,[8] renuncia por amor às leis da carne e vencendo-as com o auxílio da divina Graça.

Essa sublimação da natureza humana é incomparavelmente superior ao voo de um balão que percorre as alturas do firmamento e derrota a lei da gravidade, pois é “angelizar” o homem (Cf. Mc 12, 25), desafiar as forças do mal, com Cristo, vencer o mundo (Cf. Jo 16, 33)! A castidade perfeita faz voar pelos horizontes da vida sobrenatural, causando incompreensão em muitas pessoas não chamadas a vivê-la, as quais podem se perguntar: “como é possível a uma natureza tão material e débil elevar-se a essas altitudes da espiritualidade, livrar-se das amarras da carne e preocupar-se apenas com a contemplação dos sagrados panoramas da Religião?”. O Divino Mestre é quem lhes dá a resposta: “Quem puder compreender, compreenda” (Mt 19, 12).

O Apóstolo São Paulo também defendeu claramente o “dom divino”[9] da castidade, pois – conforme disse – “os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5, 24). Escrevendo aos de Corinto, afirmava: “A respeito das pessoas virgens, não tenho mandamento do Senhor; porém, dou o meu conselho, como homem que recebeu da misericórdia do Senhor a graça de ser digno de confiança. […] Quisera ver-vos livres de toda preocupação. O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de como agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas do mundo, procurando agradar à sua esposa. A mesma diferença existe com a mulher solteira ou a virgem. […] Digo isto para vosso proveito, […] para vos ensinar o que melhor convém, o que vos poderá unir ao Senhor sem partilha. […] E creio que também eu tenho o Espírito de Deus” (1 Cor 7, 25. 32-34. 35. 40).

Como conservar a castidade?

Conseguir o domínio de si requer uma existência inteira e “nunca poderá considerar-se total e definitivamente adquirido. Implica um esforço constantemente retomado, em todas as idades da vida (Cf. Tt 2, 1-6). O esforço requerido pode ser mais intenso em certas épocas, como quando se forma a personalidade, durante a infância e a adolescência”,[10] sendo que a vitória se encontra na conquista do coração, pois é nele onde pode nascer a impureza (Cf. Mt 5, 28; 15, 19). Em realidade, a luta para conservar a castidade é travada principalmente no interior. O Evangelho proclama bem-aventurados “os puros de coração” (Mt 5, 8), ou seja, aqueles que transformaram a sua mentalidade e o seu querer, a fim de se adaptarem às exigências da própria vocação,[11] abandonando os hábitos censuráveis daquele que “têm o entendimento obscurecido, e cuja ignorância e endurecimento de coração mantêm-nos afastados da vida de Deus; indolentes, entregam-se à devassidão, à prática apaixonada de toda espécie de impureza” (Ef 4, 18-19).

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Clá Dias, João Scognamiglio. “Voar sem amarras!”. In: Arautos do Evangelho. São Paulo: Abril, n. 105, set. 2010, p. 10.

[2] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 106, a. 1 e 2.

[3] Cf. Bautista Torelló, Joan. Scripta Theologica 27. Navarra: Universidade de Navarra, 1995, p. 282.

[4] Tanquerey, Adolphe. Compendio de Teología Ascética y Mística. Tradução de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960, p. 707.

[5] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 2351.

[6] Tanquerey. Op. Cit., p. 707.

[7] João Paulo II. Vita consecrata. n. 14.

[8] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, q. 186, a. 1.

[9] Catecismo da Igreja Católica. n. 2260.

[10] Catecismo da Igreja Católica. n. 2342.

[11] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 2517.

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A obediência II – (continuação)

Jesus fala pelos lábios do superior – 

Durante a nossa existência, os superiores que nos governam podem ir se sucedendo e, por conseguinte, apresentando diferenças de temperamento, virtude, capacidades, etc. Basta dizer que são humanos. Entretanto, essa variedade não afeta à obediência de quem abraça verdadeiramente a vida consagrada, pois ao ingressar nela, o religioso visa cumprir a vontade de Deus, a qual lhe determina obedecer em tudo as autoridades, sempre e quando não lhe ordenem algo que comporte pecado.

Desde a patrística, muitos escritores de espiritualidade e fundadores, na composição das regras monacais, sempre aplicaram esta passagem do Evangelho aos superiores religiosos: “Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita” (Lc 10, 16).[i] Assim, um súbdito não tem muitos superiores, mas somente um: “Jesus Cristo que muda de nome e de fisionomia, mas sempre é Jesus Cristo”.[ii]

Uma analogia proposta por Santo Inácio de Loyola e retomada pelo Beato Columba Marmion,[iii] pode deixar-nos atônitos, ao meditá-la seriamente. Com efeito, o que fazemos ao ajoelhar-nos diante de uma Hóstia consagrada, exposta num ostensório? Por acaso adoramos um pedaço de pão? Claro que não! A luz inequívoca da Fé ilumina a nossa inteligência para crermos nas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, através das quais Ele mesmo nos revelou estar ali a sua presença real, oculta sob as aparências de pão. Ora, a figura de um superior é equiparada, analogamente e sob certo aspecto, a esse sublime mistério, pois “quem obedece, por meio de uma voz humana, está atendendo à voz divina de Jesus Cristo”.[iv]

Caso alguns espíritos débeis ainda se abalem face às possíveis ou reais imperfeições dos seus superiores, Nosso Senhor teve a delicadeza de dar-lhes o conselho acertado, ao comentar a autoridade dos escribas e fariseus: “Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem” (Mt 23, 3). “Mesmo assim, ver Cristo no superior, quando as suas decisões nos agradam, seu talento e afabilidade conquistam nossa simpatia, é algo fácil. Mas, continuar a ver Cristo no superior, quando os seus defeitos, preconceitos e ainda desatinos saltam aos nossos olhos, é muito mais difícil. É preciso ter uma Fé viva e robusta para encontrar a pedra preciosa da vontade de Deus, em meio à ganga das deficiências e misérias humanas que a possam envolver”.[v] Pretender obedecer apenas a “pessoas perfeitas e totalmente irrepreensíveis, equivaleria a nunca querer obedecer”.[vi]

Obedecer em todas as circunstâncias

A prática da obediência se estende não somente a um superior, mas também a todos os “subalternos revestidos de uma parte da sua autoridade”,[vii] os quais exercem qualquer tipo de direção, estável ou transitória, devido às diversas funções numa comunidade. Devemos obedecê-los, “ainda quando sejam jovens, sem talento, sem experiência, de condição humilde e de exterior desagradável, rudes e exigentes, inconstantes e caprichosos, pouco edificantes, e, sob muitos aspectos, os últimos da casa”,[viii] pois, na verdadeira obediência, “não devemos olhar para quem agimos, mas sim, por quem agimos”,[ix] ou seja, por Cristo. Quem tem desregrado amor a si mesmo, facilmente os acusará “de extravagância, injustiça, cólera, despotismo, e cultivará a amizade com espíritos mal intencionados, cuja inveja exerce maligna influência”.[x]

A virtude da obediência pede ainda ser praticada “na saúde e na doença, em todas as condições e em todas as circunstâncias, como na própria velhice, quando o jugo da obediência pode se apresentar mais pesado; por mais que se tenham prestado os serviços mais relevantes; ainda quando se tenham desempenhado os mais importantes cargos; é preciso sempre conservar-se simples, submisso e cândido como uma criança, nas mãos da obediência”.[xi] As almas verdadeiramente amantes da virtude “não se contentam em obedecer exteriormente, mas interiormente subjugam a sua vontade ainda nas coisas mais trabalhosas, contrárias ao seu modo de ser, e o fazem de coração, sem queixar-se, felizes de poderem assemelhar-se mais perfeitamente a seu divino modelo”.[xii] Nunca procuram manifestar ao superior, velada ou declaradamente, as preferências que têm por isto ou por aquilo, a fim de receberem determinadas incumbências. Quem assim age, não faz senão enganar-se a si mesmo, porque – como disse São Bernardo – “nessa ocasião não é ele que obedece a seu superior, mas é o superior quem lhe obedece”.[xiii]

O mesmo santo ainda adverte: “O verdadeiro obediente não conhece contemporizações, tem horror de deixar algo para amanhã; não entende demoras, adianta-se à ordem; está com os olhos fixos, o ouvido atento, a língua pronta para falar, as mãos dispostas a trabalhar, os pés prontos para correr; está inteiramente recolhido para compreender sempre aquilo que lhe é mandado”.[xiv] A constância é um dos seus maiores méritos, pois “executar com prazer algo mandado uma só vez, e quando o achamos agradável, custa muito pouco; mas quando nos dizem ‘farás sempre isto, enquanto viverdes’– afirma São Francisco de Sales –, ali está a virtude”.[xv] O religioso não faz ideia de quão próxima lhe é a santidade. Ela – dizia São Felipe Neri – é nada mais do que sacrificar “quatro dedos de testa, ou seja, mortificar a própria vontade”.[xvi]

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[i] Cf. Espinosa Polit. Manuel María. La obediencia perfecta: comentario a la carta de la obediencia de San Ignacio de Loyola. 2 ed. México: Jus, 1961, p. 9.

[ii] Longhaye, Georges. Retraite annuelle de huit jours: d’après Les Exercices de Saint Ignace. 3 ed. Paris: Casterman, 1925, p. 642.

[iii] Cf. Marmion, Columba. Le Christ, idéal du moine: conférences spirituelles sur la vie monastique et religieuse. Bélgica: Maredsous, 1947, v. 1, p. 132.

[iv] Gilleman, Gérard. L’obéissance dans notre vie divine. Bélgica: Christus Rex, 1955, (n. 8).

[v] Espinosa Polit. Op. Cit., p. 11.

[vi] Judde, Claudio. Palestra, apud Espinosa Polit. Op. Cit., p. 11-12.

[vii] Royo Marín, Antonio. La vida religiosa. 2 ed. Madrid: B.A.C, 1968, p. 368.

[viii] Royo Marín. Loc. Cit.

[ix] San Ignacio de Loyola, Carta de la obediencia. 26 mar. 1553, apud Espinosa Polit. Op. Cit., p. 7.

[x] Royo Marín. Op. Cit., p. 368.

[xi] Royo Marín. Loc. Cit.

[xii] Tanquerey, Adolphe. Compendio de Teología Ascética y Mística. Traducción de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960, p. 683.

[xiii] São Bernardo de claraval. Sermon XXXV, n. 4. Disponível em: <http://membres.lycos.fr/abbayestbenoit>.

[xiv] Idem, Sermon XLI, n. 7. Disponível em: <http://membres.lycos.fr/abbayestbenoit>.

[xv] São Francisco de Sales. Pláticas espirituales. c. XI, apud Tanquerey. Op. Cit., p. 687.

[xvi] Apud Santo Afonso Maria de Ligório. A selva: dignidade e deveres do Sacerdote. Tradução de Pe. Martinho. Porto: Fonseca, 1928, p. 222.

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A Obediência I

Deus é a autoridade máxima do Universo e, portanto, não deve obediência a nenhum outro ser inteligente. Sem embargo, nem Ele quis privar-se da prática dessa admirável virtude: o Verbo eterno, ao ocultar-se sob os véus de uma carne mortal, tornou-se dependente, sob certo aspecto, das outras duas Pessoas Trinitárias. Vindo à Terra, deixou-nos seu comovedor exemplo ao sujeitar-se à Santíssima Virgem e a São José, como sinal da sua obediência a Deus Pai,[i] a qual atingiria o ápice nas vésperas da Paixão: “Pai, se é de teu agrado, afasta de Mim este cálice! Porém, não se faça a minha vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42).

É sabido que, para nos redimir, teria bastado apenas uma gota de seu preciosíssimo Sangue. Entretanto, o amor divino excedia qualquer limite: no seio da Trindade fora decretada a consumação completa do holocausto do Filho; a Cruz deveria ser hasteada sobre o Calvário e carregar o Cordeiro imolado que assumiu sobre Si todas as nossas iniquidades. Como qualificar esse ato de obediência? Somente um adjetivo parece descrevê-lo por inteiro: divino. Cristo, “tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8), submeteu-se inclusive às autoridades que o condenaram, embora tivesse pleno poder para defender-se, como asseverou a São Pedro: “Crês tu que não posso invocar meu Pai, e Ele não me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26, 53).

Quem ousaria, pois, ao abraçar os conselhos evangélicos, procurar outro modelo que não seja Cristo? Contudo, alguém pode dizer: “Eu me consagrei a Deus e a Ele devo obediência, mas como hei de conhecer a sua vontade, se não O vejo?”. A resposta é muito simples: “a obediência do religioso descansa sobre o fundamento sobrenatural da Fé, a qual reconhece em todo superior legítimo, qualquer que ele seja, o lugar-tenente ou vigário de Cristo”.[ii] Acatando as ordens recebidas, quem obedece pode estar certo de cumprir a vontade divina. A objeção, porém, continua: “E quando o superior cai em erro, o Ser infinitamente perfeito também me manda errar? Será mesmo que a vontade divina se identifica com a do superior?”.

Deus se adapta à vontade do superior

Há inúmeros episódios na História da Igreja que permitem comprovar o alto grau do amor de Deus pela virtude da obediência. Tomemos alguns da vida de Santa Margarida Maria Alacoque, para encontrar a resposta ao problema levantado. A famosa vidente do Sagrado Coração de Jesus tornou-se religiosa visitandina no ano de 1671 e, como sói acontecer com os grandes místicos, aqueles que os acompanham de perto correm o risco de desprezá-los ou até ridicularizá-los pelos extraordinários dons de que são objeto, pois estes costumam apresentar-se sob o véu de uma humildade profunda. Foi o caso de Santa Margarida: devido à sua aparente incompetência na vida comunitária, viu-se muito perseguida pela superiora do convento, a qual, duvidando das aparições, teve a empáfia de ordenar-lhe que pedisse a seu Jesus a tornasse mais útil.

A ordem foi cumprida e a resposta foi a seguinte: “Eu te farei mais útil para a religião do que ela pensa, mas de uma maneira somente conhecida por Mim. Doravante, adaptarei as minhas graças ao espírito da regra, à vontade de tuas superioras e à tua debilidade, de sorte que deverás ter por suspeito tudo quanto te afaste da observância exímia da regra, a qual Eu quero que prefiras a qualquer outro ato de piedade. Ademais, verei com gosto que anteponhas a vontade de tua superiora à minha, quando ela te proíbe fazer aquilo que Eu tiver ordenado. Deixa-a proceder como quiser. Eu saberei executar os meus desígnios, ainda por caminhos que pareçam contraditórios”.[iii]

Quem pode hesitar, depois destas palavras, em reconhecer que a vontade divina se encontra oculta na vontade do superior? Caso restem dúvidas, acompanhemos mais algumas verdades que transbordaram do Sagrado Coração de Jesus. Em certa ocasião, Ele repreendeu a sua vidente por prescindir de permissão superior para mortificar-se mais do que era permitido pela regra: “Enganas-te pensando agradar-Me com essas ações e mortificações que partem da tua própria vontade, ignorando a da superiora, antes do que submetendo-se a ela. Eu rejeito isso como frutos corrompidos, pois Me causam horror numa alma religiosa. Agrada-Me mais que tenhas comodidades por obediência, do que ver-te oprimida por austeridades e jejuns, por vontade própria”.[iv] São Francisco de Sales, o fundador da ordem, apareceu também a Santa Margarida e lhe disse com severidade: “Pensas poder agradar a Deus sobrepondo-te aos limites da obediência, que é o fundamento desta Congregação, e não as austeridades?”.[v] E, por último, bastou esta afirmação de Nosso Senhor para ela nunca mais transgredir qualquer regra: “O que fizeste até aqui é para Mim, o que estás fazendo agora é para o demônio”.[vi]

Invariavelmente, onde não há pecado, Deus corrobora a autoridade de um superior, pois Ele ama a ordem que pôs no Universo. Ao cumprirmos uma norma, errônea ao nosso parecer, estaremos obedecendo, mais do que a este ou àquele homem, a uma disposição divina, que é respeitar a hierarquia humana desejada por Deus. Ninguém tem o direito de se revoltar contra uma autoridade, sob o pretexto de estar fazendo algo mais razoável à ordem recebida, pois “aquele que resiste à autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus, e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação” (Rom 13, 2). Devemos ser submissos “a toda autoridade humana” (1Pd 2, 13), e não somente àquelas que julgamos serem boas e justas, “porque não há autoridade que não venha de Deus” (Rom 13, 1).

Somente existe um caso no qual um súbdito nunca deve obedecer: quando lhe ordenam expressamente cometer qualquer pecado, ainda que venial. Foi o que sucedeu, por exemplo, aos Apóstolos diante das autoridades religiosas da época. Ao serem forçados a ocultar a verdade revelada por Deus, guardando silêncio a respeito do nome de Jesus, São Pedro e São João responderam perante o sinédrio: “Julgai vós mesmos se é justo diante de Deus que obedeçamos a vós mais do que a Ele.” (At 4, 19). Nesse momento, calar talvez tivesse sido o maior pecado de omissão em toda a História, pois nenhuma autoridade ultrapassa o infinito e imutável poder de Deus sobre as suas criaturas. Assim, ninguém está obrigado, em consciência, a obedecer algo que Ele condena. O próprio São Paulo – portador do poder divino a que grau! – esclarece, dirigindo-se aos de Corinto, ser a “autoridade que o Senhor nos deu, para vossa edificação e não para vossa destruição” (2 Cor 10, 8), e não há pior ruína do que ofender a Deus violando qualquer ponto das suas divinas palavras. Portanto, sempre se deve obedecer um superior, excetuados os casos nos quais é patente a infração à vontade de Deus, revelada nas Escrituras e na Sagrada Tradição.

Continua num próximo post…

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[i] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 532.

[ii] Espinosa Polit, Manuel María. La obediencia perfecta: comentario a la carta de la obediencia de San Ignacio de Loyola. 2 ed. México: Jus, 1961. p. 9.

[iii] I. G. Vida de la Beata Margarita María de Alacoque: religiosa de la Visitación de Santa María, orden de San Francisco de Sales, de quien se sirvió para establecer la devoción al Sagrado Corazón de Jesús. Barcelona: Librería de Francisco Rosal, 1864. p. 52-53.

[iv] Idem, p. 66.

[v] Idem, p. 46.

[vi] Idem, p. 66.

 

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Os Conselhos Evangélicos

Há, nos Evangelhos, palavras do Divino Mestre que se destinam ao comum dos homens, como mandatos a serem cumpridos, sem exceção. No entanto, em outras ocasiões, Nosso Senhor dirige-se a grupos mais restritos, como aos seus discípulos, aconselhando paternalmente modos de viver para aqueles que O quisessem seguir num caminho excepcional, à procura de maior perfeição. Eis o que conhecemos como Conselhos Evangélicos: uma vocação para configurar-se mais plenamente ao próprio exemplo de vida dado pelo Filho de Deus.

*     *     *

No Paraíso, Deus concedera ao homem domínio perfeito sobre toda a natureza, a começar pelo seu próprio corpo, pois nenhum instinto escapava ao controle da vontade governada pela inteligência, a qual era iluminada pela Fé. Enquanto permanecesse obediente ao seu Criador, ele conservaria esse equilíbrio – chamado dom de integridade – que somente um pecado de orgulho poderia arrebatar de seu ser, precisamente por não ter em nada desregradas as inclinações inferiores.[1]

Nossos primeiros pais pecaram e, como castigo pela transgressão ao preceito divino, a Criação passou igualmente a desobedecer-lhes. Assim eles perderam também aquela harmonia perfeita do estado de inocência. Acenderam-se três movimentos desordenados no interior dos homens: “a concupiscência[2] da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 Jo 2, 16), ou seja, a tendência desregrada para os prazeres dos sentidos, para o apego desmedido aos bens terrenos e para satisfazer os delírios da vontade própria desvirtuada.

Nessa trágica situação, valeu-nos a misericórdia divina que enviou à Terra o seu próprio Filho, a fim de resgatar nossa decaída condição. Dádiva altíssima e insuperável, pela qual a Santa Igreja não receia exclamar: “Ó feliz culpa que nos mereceu tal e tão grande Redentor!”.[3] Sim, o próprio Criador do Universo assumiu nossa carne, para nela curar as chagas abertas por Adão. Ao morrer no Calvário, Cristo devolveu-nos copiosamente a vida sobrenatural, pois “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20), e, por meio da Igreja e dos Sacramentos nascidos de seu flanco, Ele deposita em nossas almas a semente da Graça, a qual se desenvolve de diversas maneiras, conforme a vocação à qual se destine cada batizado.

Os frutos da Redenção

Infinitos e universais são os frutos nascidos da sagrada árvore da Cruz. Porém, os homens não se beneficiam deles por igual, como ensina a parábola do semeador. Além das sementes que morreram sem nada produzir, três são as categorias das plantadas em terreno fértil, as quais igualmente tiveram de morrer, mas deram frutos, rendendo quantidades diferentes: “uma cem, outra sessenta e outra trinta” (Mt 13, 8). Jesus, nessa ocasião, explicou aos seus discípulos estar referindo-se aos fiéis que ouvem e observam a palavra de Deus (Cf. Mt 13, 23), morrendo para o pecado e para si mesmos. Contudo, surge uma pergunta: a quem caberá render o cem por um, o imolar-se por completo?

O caminho para alcançar a salvação é a observância de todos os preceitos divinos, resumidos assim por Nosso Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento (Cf. Dt 6, 5); e a teu próximo como a ti mesmo (Cf. Lv 19, 18)” (Lc 10, 27). Eles são obrigatórios para todo católico, em qualquer estado de vida, a fim de perseverar na Graça Divina e poder entrar na Bem-aventurança eterna. Porém, um número restrito de batizados recebe do Divino Mestre um convite excepcional para não se restringir aos meios habituais. Chama-os a renunciar a tudo o que possuem (Cf. Lc 14, 33), para trilhar um caminho especial de maior perfeição, vivendo já nesta Terra “como os Anjos do Céu” (Mt 22, 30). Esses são conhecidos na Igreja Católica com o nome de “religiosos”, os quais, ao seguirem mais de perto Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo “caminho apertado” e pela “porta estreita” (Cf. Mt 7, 14), experimentam quão  copiosa é a Redenção que n’Ele se encontra (Cf. Sl 129, 7).[4]

A vocação religiosa

Na Antiga Aliança, a vocação consagrada era rara, pois quem não tinha descendência facilmente via-se discriminado pelos demais, ao estar privado de ser ancestral do Messias. Além do mais, as posses materiais, em especial a de terras, eram consideradas como um sinal de predileção e benquerença divinas. O advento de Cristo, porém, reverteu essa situação: seu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36) e realiza-se no interior dos corações! Ele mesmo afirmou serem seus familiares aqueles “que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 8, 21). Assim, por meio de seu divino exemplo de desapego às coisas desta Terra, abriu-se nova e esplêndida via de santificação.

Em certa ocasião, estando na Judeia, um jovem aproximou-se d’Ele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?”. Respondeu Jesus: “Observa os Mandamentos”. Disse-Lhe o jovem: “Já os tenho observado desde a minha infância. O que ainda me falta?” Cristo, com grande amor, fixou nele o olhar e acrescentou: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois vem e segue-Me!”. O jovem foi-se cheio de tristeza, pois era muito rico e não queria acatar o convite do Mestre (Cf. Mc 10, 17. 20; Mt 19, 18. 21). “Jesus disse, então, aos seus discípulos: Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no Reino dos céus! […] Pedro então, tomando a palavra, disse-Lhe: Eis que deixamos tudo para Te seguir; que haverá então para nós? Respondeu Jesus: Em verdade vos declaro: […] todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19, 23. 27-29).

Com efeito, donde provém essa força para tudo deixar e configurar-se plenamente com Cristo, pobre, casto e obediente? Ela provém da voz do próprio Deus encarnado, capaz de incutir a Graça nas almas: “Segue-Me!”. Esse foi o convite dirigido a muitos de seus discípulos, como a Filipe (Cf. Jo 1, 43) e a Mateus (Mt 9, 9). Para outros terá sido por meio de um gesto ou talvez um olhar, mas era sempre a divina vontade que, almejando um assentimento ao chamado, impelia interiormente seus eleitos: “Não fostes vós que Me escolhestes, mas Eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).

À semelhança do moço rico, Jesus olha com amor seus escolhidos e aconselhando paternalmente: “Se quereis ser perfeitos, vinde e segui-Me!” (Cf. Mt 19, 21), parece dizer-lhes: “Vinde para serdes transformados em outros Eu mesmo!”. Magnífica promessa para aqueles que se imolam por completo nas mãos de Nosso Senhor, deixam tudo e O seguem! Tornam-se sementes de fruto abundante, pois, ao ouvirem e observarem com maior perfeição os Conselhos Evangélicos de Pobreza, Castidade e Obediência, subtraem-se à herança do pecado, morrendo para a tríplice concupiscência. Ao renunciarem aos seus bens, entregam a Deus a capacidade de possuir, praticando com integridade a virtude da pureza, consagram-Lhe seus corpos e acatando com alegria as determinações de seus superiores, submetem-Lhe a inteligência e a vontade.

Essa vocação constitui um milagre maior do que fazer um cego ver ou um paralítico caminhar, pois visa diretamente a transformação de uma alma – finalidade última inclusive das curas corporais operadas por Cristo –,[5] elevando-a a um estado de vida pelo qual subjuga o procedimento natural das leis da carne, prenunciando assim a Bem-aventurança Celeste.[6] Se o religioso corresponde a esse convite divino, perseverando na contínua procura da perfeição, conquista grandíssimo prêmio na Eternidade!

A vida em comunidade

Entretanto, a realização dessa entrega não é algo abstrato. Na História da Igreja surgiram inúmeros meios para torná-la efetiva, sendo o mais difundido e apropriado dentre eles a vida em comunidade, pois “é onde os conselhos evangélicos de pobreza e obediência recebem aplicação e realização concretas”.[7] Devido aos crescentes perigos do mundo, às suas maléficas solicitações e conforme as necessidades da Esposa Mística de Cristo, a Santa Igreja, o Espírito Santo suscitou, ao longo dos tempos, diversos fundadores de famílias espirituais que congregam em suas fileiras vocações consagradas, as quais se dedicam, em primeiro lugar, à mútua santificação, segundo carisma próprio da fundação.[8]

Ao ingressar numa comunidade, “guiado pelos superiores, ajudado pelos seus irmãos, sustentado pelas regras, as quais determinam até os mínimos detalhes aquilo que deve fazer, o religioso sentirá a realidade do Corpo Místico de Cristo”.[9] Assim, “quando ele sem verdadeira e autêntica necessidade consegue subtrair-se habilmente de algum aspecto da vida comunitária para se entregar a seus próprios gostos, comodidades ou caprichos, ‘autoexcomunga-se’ da corrente de graças vinculada por Deus àquela vida comunitária. Seu desventurado engenho acarretou-lhe uma perda espiritual incalculável”.[10]

Sim, enorme é o prejuízo dos religiosos que se afastam em algo do amor à perfeição… Quantos Santos eles têm como exemplos a imitarem! Muito mais, eles têm o próprio Deus encarnado, primeiro e exímio praticante dos seus divinos conselhos: quem tudo possuía, despojou-se da sua altíssima condição, para nascer numa gruta! São Paulo no-lo recorda: “Vós conheceis a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, fez-se pobre, a fim de vos enriquecer mediante a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). Também “a castidade religiosa […] é verdadeiramente querer ser como Cristo; todas as razões que se podem apresentar esvanecem-se diante desta razão essencial: Jesus era puro”![11] E, finalmente, “o conselho evangélico de obediência é o chamado que provém da obediência de Cristo ‘até a morte’ (Fl 2, 8)”,[12] pois, “assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, pela obediência de um só todos se tornarão justos” (Rm 5, 19)!

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 89, a. 3, ad. 3.

[2] A doutrina católica entende por concupiscência a tendência para o pecado, portanto, toda inclinação que contrarie o reto ditame da razão iluminada pela Fé. “O Apóstolo Paulo a identifica com a revolta que a carne provoca contra o ‘espírito’. Provém da desobediência do primeiro pecado. Transtorna as faculdades morais do homem e, sem ser pecado em si mesma, inclina-o a cometê-lo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2515).

[3] Vigília Pascal: Proclamação da Páscoa. In: Missal Romano. Trad. Portuguesa da 2a edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9 ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.275.

[4] Cf. João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 1.

[5] Cf. Suma Teológica. III, q. 44, a. 3, ad. 1.

[6] Cf. Código de Direito Canônico, can. 573.

[7] Gambari,  Elio. La vida común, apud Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 12 ed. Madrid: B.A.C, 2007, p. 861.

[8] Cf. Sartre Santos, Eutimio. La vita religiosa nella storia della Chiesa e della società. Milano: Ancora, 1997, p. 19.

[9] Gambari,  Elio. La vida común,  apud Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[10] Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[11] João Paulo II. Encontro do Santo Padre com as religiosas. n. 3. Paris, 31 maio 1980.

[12] João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 13.

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“Tu lhe rogarás e ele te ouvirá, e cumprirás os teus votos” (Jó 22, 27)

O mês de agosto foi marcado por uma data histórica para os arautos do Thabor, como para os de muitas outras localidades.

No dia 29, festa do martírio de São João Batista, teve lugar na Basílica de Nossa Senhora do Rosário (Serra da Cantareira-Caieiras SP,) a primeira cerimônia de emissão de votos temporários para membros, não sacerdotes, da Sociedade Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli.

27 aspirantes, dos quais 17 residem no Thabor, realizaram os mencionados votos, nas mãos do superior geral, Mons. João Scognamiglio Clá Dias, prometendo praticar os Conselhos Evangélicos de Castidade, Pobreza e Obediência, segundo o modo de vida expresso nas constituições dessa sociedade.

Graça imensa, pois o seguimento de Nosso Senhor Jesus Cristo por meio da prática mais perfeita dos seus divinos conselhos é penhor de grande recompensa na Eternidade (Cf. Mt 19, 28-29)

Queremos, pois, de certo modo, tornar os frequentadores do blog thabor.arautos.org partícipes das bênçãos recebidas nesse dia, não só compartindo-lhes algumas fotos, mas também dedicando uma série de quatro próximos posts para aprofundar, mais um pouco, o conhecimento teológico e espiritual desse extraordinário tesouro que são os conselhos evangélicos.

Aguarde-os!

Texto: Sebastián Correa Velásquez

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Dormitório ou cemitério?

Ninguém precisa ser profeta para prever que um dia há de morrer, pois para isso basta estar vivo. Se fizermos um levantamento das pessoas que nasceram há cem anos, pelo menos 98% delas já terá deixado esta Terra. Conforme pesquisas mundiais, a cada dia morrem aproximadamente duas pessoas por segundo. A morte, sem dúvida, é uma realidade cotidiana.

Os cemitérios no-lo recordam continuamente, mas há um detalhe contido no nome desses lugares que é essencial para um cristão saber. Na Grécia antiga, cemitério era o nome com o qual se designava um dormitório: κοιμητήριον (koimetérion). Por que então os cristãos foram escolher o nome “dormitório”  para chamar o lugar onde se enterram os corpos? Porque a Ressurreição dos mortos é um dogma de Fé, doutrina da Santa Igreja, revelada pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo.

O cristão sabe que a morte não é o fim de tudo, mas, pelo contrário, é o nascimento da alma para a eternidade, aguardando a Ressurreição dos corpos, os quais, por assim dizer, dormem um sono profundo à espera do último dia, pois, “quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro” (1 Tessalonicenses 4, 16).

Assim, sempre que virmos numa lápide mortuária a sigla R.I.P., lembremo-nos: Requiescat In Pace, que descanse em paz não só a alma desse falecido, mas também descanse em paz o seu corpo, porque se este foi habitado por uma alma que conservava a Graça de Deus, só pode ser plácido o seu repouso, pois um dia ele há de ressurgir para a Glória.

Quadro do Hospital Santa Caridad, em Sevilha (Espanha)

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Os Sibaritas não existem mais?

Como é sabido, os presentes gregos não costumam ser muito convenientes para quem os recebe… Na Antigüidade, já Tróia teve a oportunidade de comprová-lo ao ganhar o célebre cavalo de madeira.

Os gregos também souberam presentear a velha região do Lácio (atual Itália central). A ela viajaram com o intuito de divulgar os seus costumes e fundar diversas cidades, algumas das quais marcaram profundamente a história da “bota” itálica. Ainda hoje, é possível visitar muitas das ruínas dessas antigas cidades. Sem embargo, há uma da qual nada restou: Síbaris.

Fundada em 720 a.C, foi uma das mais importantes colônias helênicas, contudo, acabou sendo corroída por um dos defeitos mais avassaladores que existem:  a indolência. Algumas das razões de essa cidade ter desaparecido por completo ecoam ao longo dos tempos; como também, pitorescos episódios, os quais pelo seu caráter absurdo, invariavelmente provocam o riso.

Conta-nos Sêneca, um dos mais eruditos romanos do século I a.C, a história de certo homem sibarita que dera-se à rara tarefa de recobrir o seu precioso divã com pétalas de rosa, a fim de usufruir ao máximo o conforto noturno oferecido por tão macias e aromáticas flores. No dia seguinte, qual não foi o desgosto do seu vizinho ao ter de aturar os protestos do acomodado homem, pois este não conseguira conciliar o sono!  Qual fora a causa de tal desgraça, perguntou-lhe assombrado o primeiro. O outro alegou não ter conseguido fechar as pálpebras para descansar, pois uma pétala amassada, abaixo das suas costas, tinha-lhe irritado a pele…

Quantas histórias como esta já ouvimos contar.  Muitas talvez cheguem a tocar na lenda, entretanto, não estarão muito longe da realidade desse povo… O certo é que vivia entregue ao gozo da vida e seu péssimo comportamento acarretou-lhe a ruína, tornando-se uma advertência para todos os tempos.

Síbaris tinha seus desfiles militares como uma das mais importantes comemorações. Os trajes eram folgados e caricatos.  Nas festas que se seguiam, a comida era abundante até o excesso e, como não podia faltar, as danças eram intermináveis.

Ano após ano, começaram a achar sem graça o passo da cavalaria, o qual lhes parecia demasiado repetitivo.  Então, os sibaritas deram-se o trabalho de amestrar os seus cavalos, a fim de também estes fazerem parte das coreografias. Após muitas tentativas, conseguiram finalmente incluir o elemento eqüino nos seus ridículos bailes.

Entretanto, em 510 a.C, essa cidade do sudeste da “bota” itálica entrou em guerra contra Crotona, a qual ficava a 110 quilômetros de distância em direção ao sul.

Era chegada a hora do combate… Fileiras cerradas, capacetes apertados, lanças em riste! Tudo parecia estar preparado, mas somente lhes faltava uma coisa: o tirocínio. Os sibaritas encetaram a sua numerosa carga de cavalaria e, nesse instante, os crotoneses aproximaram as suas “armas secretas” dos lábios e simplesmente, com um belo concerto de gaita, puseram a dançar toda a cavalaria dos rivais…

Só isso foi suficiente para comprar o desastre de Sibaris!  Que fiasco! De tal maneira a sua população foi dizimada e as suas construções destroçadas que, hoje em dia, não se conhece de modo exato a sua localização geográfica.

Uma consideração final. Torna-se desnecessário provar, para qualquer homem, que os bens terrenos passam. Basta observar a realidade. Ora, quem neles deposita a sua felicidade, cedo ou tarde, acabará perdendo-a. Por isso, os sibaritas não só perderam a batalha, mas também, a aparente felicidade da qual se gabavam.

E, com muita propriedade, o termo “sibarita” passou a ser utilizado, ao longo da História, para denominar alguém entregue à indolência e ao gozo da vida. De fato, Síbaris desapareceu para sempre, mas, às vezes, ao nos depararmos com certo tipo humano frequentemente observado no mundo moderno, somos levados a nos perguntar: Será verdade que aquele povo da Antiguidade, de algum modo, não deixou descendência?

Texto: Sebastián Correa Velásquez

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Santo Afonso e o Rosário

Santo Afonso Maria de Ligório, nos últimos anos da sua vida, encontrava-se já muito doente. Sofria de paralisia nas pernas e seu pescoço permanecia continuamente inclinado.

Como um refrigério no meio desse sofrimento, ele era levado de cadeira de rodas, por um irmão religioso, pelos corredores e redondezas do mosteiro,  enquanto rezavam o Santo Rosário.

Algumas vezes aconteceu de os dois não conseguirem recordar em que conjunto de mistérios tinham parado a recitação do Rosário. O irmão, preocupado pela saúde de  Santo Afonso, dizia-lhe então:

– Certamente estamos no último… O senhor se encontra muito cansado e seria melhor ir prontamente a repousar.

A resposta não se fazia esperar:

– Irmão, o senhor não sabe que se eu deixar passar um dia sem rezar o Rosário completo, posso comprometer a minha salvação eterna?

E o santo fazia questão de começar novamente a recitação do Rosário!

Esse era o zelo pela salvação eterna do maior moralista, também doutor da Igreja, de quem ficou proverbial esta frase, colhida em um dos seus livros: “Quem reza se salva e quem não reza se condena”.

Sim, deixando de completar diariamente esse elo que o unia à Santíssima Virgem, o santo tinha presente que as suas forças em algo se debilitariam e, das próximas vezes, seria fácil dizer: “é verdade, irmão, vamos dormir”. E quem sabe, tempo depois, poderia vir a triste afirmação: “hoje não dá para rezar…”.

Como grande moralista, Santo Afonso tinha bem claro que o cometer um pecado grave, merecedor do inferno, é algo preparado muito anteriromente pela debilitação da alma, o que com facilidade se dá quando se descuida a prática assídua da oração (ver mais, a esse respeito, em post do dia 20 de agosto).

Texto: Fernando Tamura

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