Thabor

Conheça aqui essa residência dos Arautos do Evangelho

By

A castidade consagrada II – (continuação)

A virtude da castidade é como um valioso objeto de cristal, muito delicado, o qual deve ser carregado com extremo cuidado, para poder conservar-se intacto. Inúmeros recursos naturais e sobrenaturais existem ao nosso alcance, com vistas a resguardar a virtude angélica. Detenhamo-nos, pois, na consideração de alguns.

 Disciplinar os sentidos. A finalidade da mortificação dos sentidos é guarnecer as “muralhas” da nossa “fortaleza” contra o inimigo infernal, o qual ronda “como um leão que ruge buscando a quem devorar” (1 Pe 5, 8).

1o Colocar limites ao olhar exterior e ao interior é um dos mais eficazes meios para conservar a pureza, pois a “vista excita os desejos dos insensatos” (Sb 15, 5) e a imaginação é a “louca da casa” – na expressão de Santa Teresa de Jesus[1]. Se não formos vigilantes, a tentação pode assaltar-nos quase despercebidamente, projetando na nossa “tela interior” cenas que nos passaram pela vista, embora não lhes tenhamos dado atenção. O venerável patriarca Jó, bem conhecendo a natureza humana, fizera um pacto com seus olhos de jamais fitar algo que pudesse ser-lhe motivo de queda (Cf. 31, 1). E o Espírito Santo inspirou o autor sagrado do Eclesiástico a escrever uma série de conselhos, a fim de prevenir-nos acerca do descontrole das vistas, entre os quais consta este: “Não lances os olhos daqui e dali pelas ruas da cidade, não vagueies pelos caminhos” (Eclo 9, 7). A desocupação também é inimiga da castidade. Quem permanece desocupado aprende em sua imaginação a fazer o mal, porque “a ociosidade ensina muita malícia” (Eclo 33-29). Portanto, jamais nos deixemos tomar por sonhos de olhos abertos, nos quais facilmente se alberga o Maligno.

 2o A língua e o ouvido mortificam-se pela vigilância nas conversas, não só no que diz respeito a matérias ilícitas evidentemente, pois “disso nem se faça menção entre vós, como convém a santos” (Ef 5, 3), mas também, tendo humildade no convívio, sabendo ceder a palavra e ouvir os demais, adaptando-se à vontade alheia e evitando os excessos de curiosidade, porque  quem “refreia a língua […] é um homem perfeito, capaz de refrear todo o seu corpo. Quando pomos o freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam,…

governamos também todo o seu corpo. Vede também os navios: por grandes que sejam e embora agitados por ventos impetuosos, são governados com um pequeno leme à vontade do piloto. Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode gloriar-se de grandes coisas. Considerai como uma pequena chama pode incendiar uma grande floresta! Também a língua é um fogo, um mundo de iniquidade. A língua está entre os nossos membros e contamina todo o corpo; e sendo inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa vida. […] Não convém, meus irmãos, que seja assim” (Tg 1, 27; 3, 2-6. 10).

3o O paladar e o olfato também devem ser refreados, quanto ao abuso dos prazeres que deles provêm. A alimentação é um bem, e até um ótimo meio para louvar a Deus pelas maravilhas contidas na Criação. Igualmente, as fragrâncias extraídas da vegetação podem elevar os ambientes e, em consequência, os espíritos. Sem embargo, nunca devem se tornar motivo de deleites mundanos, pois “não são mais que sombra do que há de vir” (Cl 2, 17). Servir-se com intemperança desses recursos pode ser prejudicial para a guarda da castidade, uma vez que o excesso deles amolece o corpo e, por conseguinte, a vontade.

“São Francisco de Assis chamava ao seu corpo ‘irmão burro’: ‘irmão’ porque era seu companheiro de viagem, mas ‘burro’ porque sabia que lhe era obediente. Se concederes tudo ao corpo, bem depressa o farás senhor de ti”[2]. Ceder aos instintos frequentemente não significa acalmá-los, mas ao contrário, pode excitá-los ainda mais. Não permitamos, pois, que o “burro” passe a nos governar! Imitemos o exemplo do Apóstolo: “Castigo o meu corpo e o mantenho na servidão” (1 Cor 9, 27). Sem contar que a sobriedade é um dos melhores “médicos” de toda a História, antigamente muito “consultado” pelos longevos ermitãos do deserto, por isso, pondera o adágio latino: “modicus cibi, medicus sibi[3], quem é módico no alimento é médico de si mesmo.

4o “O tato é um sentido especialmente perigoso”[4]. Para discipliná-lo o batizado deve revestir-se de todo pudor privado e público, a fim de prever os perigos, precaver-se e evitá-los. Todos os atos, especialmente quando se está a sós, devem ser permeados de zelo pela integridade própria ao “templo do Espírito Santo” (1 Cor 6, 19) que é o corpo. Quanto nos agrada entrar numa igreja limpa, ordenada e sacral, digna da presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Basílica Nossa Senhora do Rosário – Arautos do Evangelho – Thabor

Pois bem, não contristemos o Espírito Santo (Cf. 1 Ef 4, 30), profanando o lugar de sua habitação com atitudes indecorosas: é preciso aprimorar o nosso templo, deixá-lo pulcro e sagrado como merece. Para isso, cultivemos uma ordem exímia em nosso recinto de repouso noturno e uma limpeza exemplar na apresentação pessoal, porque “o cuidado exterior leva a premunir-nos contra tudo o que possa roubar a pureza da alma”[5].

Mortifiquemos a carne, não cedendo aos horrendos prazeres da preguiça. De manhã “despertai, como convém, e não pequeis!” (1 Cor 15, 34); levantemo-nos imediatamente após acordar, não dando ocasião ao diabo de nos tentar. Privemo-nos das comodidades excessivas e, se nos acontece de depararmo-nos com algo que possa despertar os instintos da carne, afastemo-nos imediatamente da ocasião, pois “quem ama o perigo nele perecerá” (Eclo 3, 27). O melhor modo de triunfar nesses momentos não é enfrentar as tentações, mas fugir delas, como afirmava São Jerônimo: “Fujo para não ser vencido”[6].

 “Vigiai…” (Mt 26, 41). Nosso trato com os demais deve ser sempre respeitoso e até cerimonioso, nunca permitindo que se torne espontâneo, trivial ou indisciplinado. Cuidado com as amizades, pois “más companhias corrompem bons costumes” (1 Cor 15, 33)! Pela castidade perfeita, oferecemos o nosso coração ao Criador, amando ao próximo por puro amor a Deus, “o amor em sua forma mais elevada, ou seja, […] sem participação alguma com as criaturas no plano meramente natural”[7]. Muitas vezes – dizia São Francisco de Sales – pensamos estimar uma pessoa por amor sobrenatural, mas, na realidade, fazemo-lo por amor a nós mesmos, pela satisfação e atrativo que nos provoca o trato com ela[8].

Eis alguns dos sintomas que ajudam a desmascarar as afeições desregradas: “falar pouco das coisas de Deus e muito da mútua amizade; louvar-se, adular-se, ser indulgentes reciprocamente; queixar-se amargamente das correções dos superiores, dos obstáculos que lhes põem para andar juntos, das suspeitas que parecem manifestar; na ausência da pessoa amiga, experimentar intranquilidade e tristeza; ter distrações na oração por causa dela; encomendá-la a Deus com fervor extraordinário; ter a sua imagem gravada na alma; pensar nela dia e noite, e em sonhos ainda; perguntar com muito interesse onde está, o que faz, quando virá, se tem amizade com outra pessoa”[9].

Depois de anos de experiência, São João Bosco disse ter-se convencido de que esse gravíssimo perigo é contínuo, e alcunhou-o com o nome de “amizades particulares”. Mais tarde, porém, quis catalogá-lo como a “peste das comunidades”[10]. Uma frase atribuída a Santo Agostinho descreve o percurso que pode traçar quem se deixa levar por Satanás, pelo sinuoso caminho das amizades particulares: “O amor espiritual se torna afetuoso, o afetuoso obsequioso, o obsequioso familiar e o familiar carnal”[11]. Nessa matéria, como em muitas outras, é preciso fazer-se violência e cortar pela raiz o que possa tornar-se motivo de desvio do amor exclusivo a Deus, porque o Céu “são os violentos que o conquistam” (Mt 11, 12).

Prestemos, pois, atenção aos conselhos da Escritura: “Filhinhos, que ninguém vos desencaminhe” (1 Jo 3, 7); “Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado na Geena. E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo inteiro seja atirado na Geena” (Mt 5, 29-30). Especialmente, São Paulo exorta os consagrados a se mostrarem íntegros em seu proceder, “para que o adversário seja confundido, não tendo a dizer de nós mal algum” (Tt 2, 8).

♦ “… E orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41). Santo Agostinho, célebre pela sua impressionante conversão, compôs um tocante “diálogo” com a virtude angélica, externando nele a sua terrível luta para adquiri-la: “a castidade, como que rindo de mim com um gracioso sorriso, o qual me convidava a segui-la, parecia dizer-me: ‘Então, não poderás tu aquilo que puderam e podem todos esses e essas [pessoas castas]? Por ventura o que eles podem, provém das suas próprias forças ou daquelas que a graça de seu Deus e Senhor lhes comunicou? O Senhor seu Deus concedeu-lhes continência, pois eu sou dádiva d’Ele. Por que queres apoiar-te em tuas próprias forças, se elas não podem te sustentar nem dar-te firmeza alguma? Atira-te com confiança nos braços do Senhor, e não temas, porque nunca se afastará deixando-te cair. Atira-te seguro e confiante, que Ele te receberá em seus braços e sanará todos os teus males’. Eu estava muito envergonhado, porque ainda ouvia os murmúrios daquelas futilidades [da impureza], as quais mantinham-me atônito e indeciso. Então, novamente a castidade parecia dizer-me: ‘Faz-te surdo às imundas da tua concupiscência, porque assim ela ficará totalmente amortecida. Ela te promete deleites, mas não podem comparar-se com os que encontrarás na lei de teu Deus e Senhor’”[12].

E Santo Agostinho encontrou o único meio capaz de dar-lhe a pureza: “[Eu] julgava que a castidade havia de se obter com as próprias forças, e persuadia-me de que não as tinha. Sendo tão néscio, ignorava, como está escritura, que ninguém pode ser casto se Vós não lhe dais essa virtude’ (Sb 8, 21; Vulgata). E, certamente, a teríeis concedido a mim, se ferisse os teus ouvidos com os gemidos íntimos de meu coração, e com firme confiança tivesse posto em Vós todos os meus cuidados[13].

Imagem de Nossa Senhora de Fátima – Basílica dos Arautos do Evangelho – Thabor

Com efeito, mesmo utilizando-nos dos recursos para conservar imaculada a castidade, todos se mostrarão insuficientes, caso nos falte o principal: a oração. Por meio dela devemos implorar sempre o auxílio divino, pela intercessão da Mãe de toda pureza e “Mestra da virgindade”[14], Maria Santíssima. É indispensável também frequentar os Sacramentos, meios seguros para obter a Graça, especialmente a Eucaristia, pão dos Anjos (Cf. Sb 16, 20), “vinho do Novo Testamento que faz germinar virgens”[15], baluarte da castidade e melhor “remédio contra a sensualidade”[16], e o Sacramento da Penitência, o qual lança por terra os planos do demônio, quando as más solicitações que ele sugeria em nosso interior são externadas ao confessor: “tentação descoberta é tentação vencida”[17].

Mas o tentador não permanece de braços cruzados… Ele devolve, na fila da Confissão, o que procurou retirar no momento da tentação: a vergonha. São João Bosco conclamava os seus alunos a acorrerem ao sacramento da misericórdia divina, com presteza e integridade de espírito: “Asseguro-vos, queridos jovens, que a mão me treme ante a consideração do grande número de cristãos que se encaminham à eterna condenação, unicamente por ter calado ou por não ter exposto sinceramente na Confissão determinadas faltas. Se por casualidade algum de vós, ao revistar a sua vida passada, dá-se conta de que ocultou voluntariamente algum pecado, ou simplesmente retém dúvidas sobre a validez de alguma Confissão, eu lhe diria: ‘Amigo meu, por amor a Jesus Cristo e ao precioso Sangue que derramou para salvar-te, repara, suplico-te, tua consciência, a primeira vez que fores confessar-te; tudo isso que te inquieta, manifesta-o como se estivesses a ponto de morrer. E se não sabes por onde começar, dize simplesmente ao confessor que há algo na tua vida passada que te perturba. Isso será suficiente[18].

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Apud CANALS NAVARRETE, Salvador. Ascética meditada. Madrid: Rialp, 1997, p. 117.

[2] TÓTH, Tihamer. Juventude radiosa. Tradução de Joaquim M. Lourenço. 5 ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1967, p. 180.

[3] TÓTH. Compendio de Teología ascética y mística. Tradução de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960. p. 180-181.

[4] TANQUEREY. Op. Cit., p. 717.

[5] TÓTH. Op. Cit., p. 168.

[6] Apud ROYO MARÍN, Antonio. La vida religiosa. 2 ed. Madrid: B.A.C, 1968, p. 321.

[7] Idem, p. 283.

[8] Cf. TANQUEREY. Op. Cit., p. 719.

[9] VALUY,  Benoit. Vertus religieuse: Le directoire du prête. Paris: Tralin, 1913, p. 73-74, apud Tanquerey. Op. Cit., p. 720.

[10] SÃO JOÃO BOSCO. Reglas o constituciones del Instituto de las Hijas de María Auxiliaodora. n. 111. In: Obras fundamentales. Juan Canals Pujol e Antonio Martinez Azcona (diretores da edição). 3 ed. Madrid: B.A.C., 1995, p. 722.

[11] Apud TANQUEREY. Op. Cit., p. 719.

[12] SANTO AGOSTINHO. Confissões VIII, 11, 27.

[13] SANTO AGOSTINHO. Confissões VI, 11, 20.

[14] SANTO AMBRÓSIO, apud ROYO MARÍN. Op. Cit., p. 323.

[15] DARRAS, Joseph Epiphane. Historia de Nuestro Señor Jesucristo: exposición sobre los Santos Evangelios. Madrid: Gaspar & Roig, 1865, (c. IV, §. 5).

[16] LEÃO XIII, apud Pio xii. Sacra virginitas. 25 mar. 1954.

[17] TANQUEREY. Op. Cit., p. 715.

[18] SÃO JOÃO BOSCO. Apuntes biográficos del joven Miguel Magone: alumno del oratório de San Francisco de Sales. 3 ed. Turín: [s. n.], 1880. In: Obras fundamentales. Op. Cit., p. 234.

By

Os Conselhos Evangélicos

Há, nos Evangelhos, palavras do Divino Mestre que se destinam ao comum dos homens, como mandatos a serem cumpridos, sem exceção. No entanto, em outras ocasiões, Nosso Senhor dirige-se a grupos mais restritos, como aos seus discípulos, aconselhando paternalmente modos de viver para aqueles que O quisessem seguir num caminho excepcional, à procura de maior perfeição. Eis o que conhecemos como Conselhos Evangélicos: uma vocação para configurar-se mais plenamente ao próprio exemplo de vida dado pelo Filho de Deus.

*     *     *

No Paraíso, Deus concedera ao homem domínio perfeito sobre toda a natureza, a começar pelo seu próprio corpo, pois nenhum instinto escapava ao controle da vontade governada pela inteligência, a qual era iluminada pela Fé. Enquanto permanecesse obediente ao seu Criador, ele conservaria esse equilíbrio – chamado dom de integridade – que somente um pecado de orgulho poderia arrebatar de seu ser, precisamente por não ter em nada desregradas as inclinações inferiores.[1]

Nossos primeiros pais pecaram e, como castigo pela transgressão ao preceito divino, a Criação passou igualmente a desobedecer-lhes. Assim eles perderam também aquela harmonia perfeita do estado de inocência. Acenderam-se três movimentos desordenados no interior dos homens: “a concupiscência[2] da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 Jo 2, 16), ou seja, a tendência desregrada para os prazeres dos sentidos, para o apego desmedido aos bens terrenos e para satisfazer os delírios da vontade própria desvirtuada.

Nessa trágica situação, valeu-nos a misericórdia divina que enviou à Terra o seu próprio Filho, a fim de resgatar nossa decaída condição. Dádiva altíssima e insuperável, pela qual a Santa Igreja não receia exclamar: “Ó feliz culpa que nos mereceu tal e tão grande Redentor!”.[3] Sim, o próprio Criador do Universo assumiu nossa carne, para nela curar as chagas abertas por Adão. Ao morrer no Calvário, Cristo devolveu-nos copiosamente a vida sobrenatural, pois “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20), e, por meio da Igreja e dos Sacramentos nascidos de seu flanco, Ele deposita em nossas almas a semente da Graça, a qual se desenvolve de diversas maneiras, conforme a vocação à qual se destine cada batizado.

Os frutos da Redenção

Infinitos e universais são os frutos nascidos da sagrada árvore da Cruz. Porém, os homens não se beneficiam deles por igual, como ensina a parábola do semeador. Além das sementes que morreram sem nada produzir, três são as categorias das plantadas em terreno fértil, as quais igualmente tiveram de morrer, mas deram frutos, rendendo quantidades diferentes: “uma cem, outra sessenta e outra trinta” (Mt 13, 8). Jesus, nessa ocasião, explicou aos seus discípulos estar referindo-se aos fiéis que ouvem e observam a palavra de Deus (Cf. Mt 13, 23), morrendo para o pecado e para si mesmos. Contudo, surge uma pergunta: a quem caberá render o cem por um, o imolar-se por completo?

O caminho para alcançar a salvação é a observância de todos os preceitos divinos, resumidos assim por Nosso Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento (Cf. Dt 6, 5); e a teu próximo como a ti mesmo (Cf. Lv 19, 18)” (Lc 10, 27). Eles são obrigatórios para todo católico, em qualquer estado de vida, a fim de perseverar na Graça Divina e poder entrar na Bem-aventurança eterna. Porém, um número restrito de batizados recebe do Divino Mestre um convite excepcional para não se restringir aos meios habituais. Chama-os a renunciar a tudo o que possuem (Cf. Lc 14, 33), para trilhar um caminho especial de maior perfeição, vivendo já nesta Terra “como os Anjos do Céu” (Mt 22, 30). Esses são conhecidos na Igreja Católica com o nome de “religiosos”, os quais, ao seguirem mais de perto Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo “caminho apertado” e pela “porta estreita” (Cf. Mt 7, 14), experimentam quão  copiosa é a Redenção que n’Ele se encontra (Cf. Sl 129, 7).[4]

A vocação religiosa

Na Antiga Aliança, a vocação consagrada era rara, pois quem não tinha descendência facilmente via-se discriminado pelos demais, ao estar privado de ser ancestral do Messias. Além do mais, as posses materiais, em especial a de terras, eram consideradas como um sinal de predileção e benquerença divinas. O advento de Cristo, porém, reverteu essa situação: seu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36) e realiza-se no interior dos corações! Ele mesmo afirmou serem seus familiares aqueles “que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 8, 21). Assim, por meio de seu divino exemplo de desapego às coisas desta Terra, abriu-se nova e esplêndida via de santificação.

Em certa ocasião, estando na Judeia, um jovem aproximou-se d’Ele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?”. Respondeu Jesus: “Observa os Mandamentos”. Disse-Lhe o jovem: “Já os tenho observado desde a minha infância. O que ainda me falta?” Cristo, com grande amor, fixou nele o olhar e acrescentou: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois vem e segue-Me!”. O jovem foi-se cheio de tristeza, pois era muito rico e não queria acatar o convite do Mestre (Cf. Mc 10, 17. 20; Mt 19, 18. 21). “Jesus disse, então, aos seus discípulos: Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no Reino dos céus! […] Pedro então, tomando a palavra, disse-Lhe: Eis que deixamos tudo para Te seguir; que haverá então para nós? Respondeu Jesus: Em verdade vos declaro: […] todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19, 23. 27-29).

Com efeito, donde provém essa força para tudo deixar e configurar-se plenamente com Cristo, pobre, casto e obediente? Ela provém da voz do próprio Deus encarnado, capaz de incutir a Graça nas almas: “Segue-Me!”. Esse foi o convite dirigido a muitos de seus discípulos, como a Filipe (Cf. Jo 1, 43) e a Mateus (Mt 9, 9). Para outros terá sido por meio de um gesto ou talvez um olhar, mas era sempre a divina vontade que, almejando um assentimento ao chamado, impelia interiormente seus eleitos: “Não fostes vós que Me escolhestes, mas Eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).

À semelhança do moço rico, Jesus olha com amor seus escolhidos e aconselhando paternalmente: “Se quereis ser perfeitos, vinde e segui-Me!” (Cf. Mt 19, 21), parece dizer-lhes: “Vinde para serdes transformados em outros Eu mesmo!”. Magnífica promessa para aqueles que se imolam por completo nas mãos de Nosso Senhor, deixam tudo e O seguem! Tornam-se sementes de fruto abundante, pois, ao ouvirem e observarem com maior perfeição os Conselhos Evangélicos de Pobreza, Castidade e Obediência, subtraem-se à herança do pecado, morrendo para a tríplice concupiscência. Ao renunciarem aos seus bens, entregam a Deus a capacidade de possuir, praticando com integridade a virtude da pureza, consagram-Lhe seus corpos e acatando com alegria as determinações de seus superiores, submetem-Lhe a inteligência e a vontade.

Essa vocação constitui um milagre maior do que fazer um cego ver ou um paralítico caminhar, pois visa diretamente a transformação de uma alma – finalidade última inclusive das curas corporais operadas por Cristo –,[5] elevando-a a um estado de vida pelo qual subjuga o procedimento natural das leis da carne, prenunciando assim a Bem-aventurança Celeste.[6] Se o religioso corresponde a esse convite divino, perseverando na contínua procura da perfeição, conquista grandíssimo prêmio na Eternidade!

A vida em comunidade

Entretanto, a realização dessa entrega não é algo abstrato. Na História da Igreja surgiram inúmeros meios para torná-la efetiva, sendo o mais difundido e apropriado dentre eles a vida em comunidade, pois “é onde os conselhos evangélicos de pobreza e obediência recebem aplicação e realização concretas”.[7] Devido aos crescentes perigos do mundo, às suas maléficas solicitações e conforme as necessidades da Esposa Mística de Cristo, a Santa Igreja, o Espírito Santo suscitou, ao longo dos tempos, diversos fundadores de famílias espirituais que congregam em suas fileiras vocações consagradas, as quais se dedicam, em primeiro lugar, à mútua santificação, segundo carisma próprio da fundação.[8]

Ao ingressar numa comunidade, “guiado pelos superiores, ajudado pelos seus irmãos, sustentado pelas regras, as quais determinam até os mínimos detalhes aquilo que deve fazer, o religioso sentirá a realidade do Corpo Místico de Cristo”.[9] Assim, “quando ele sem verdadeira e autêntica necessidade consegue subtrair-se habilmente de algum aspecto da vida comunitária para se entregar a seus próprios gostos, comodidades ou caprichos, ‘autoexcomunga-se’ da corrente de graças vinculada por Deus àquela vida comunitária. Seu desventurado engenho acarretou-lhe uma perda espiritual incalculável”.[10]

Sim, enorme é o prejuízo dos religiosos que se afastam em algo do amor à perfeição… Quantos Santos eles têm como exemplos a imitarem! Muito mais, eles têm o próprio Deus encarnado, primeiro e exímio praticante dos seus divinos conselhos: quem tudo possuía, despojou-se da sua altíssima condição, para nascer numa gruta! São Paulo no-lo recorda: “Vós conheceis a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, fez-se pobre, a fim de vos enriquecer mediante a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). Também “a castidade religiosa […] é verdadeiramente querer ser como Cristo; todas as razões que se podem apresentar esvanecem-se diante desta razão essencial: Jesus era puro”![11] E, finalmente, “o conselho evangélico de obediência é o chamado que provém da obediência de Cristo ‘até a morte’ (Fl 2, 8)”,[12] pois, “assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, pela obediência de um só todos se tornarão justos” (Rm 5, 19)!

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 89, a. 3, ad. 3.

[2] A doutrina católica entende por concupiscência a tendência para o pecado, portanto, toda inclinação que contrarie o reto ditame da razão iluminada pela Fé. “O Apóstolo Paulo a identifica com a revolta que a carne provoca contra o ‘espírito’. Provém da desobediência do primeiro pecado. Transtorna as faculdades morais do homem e, sem ser pecado em si mesma, inclina-o a cometê-lo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2515).

[3] Vigília Pascal: Proclamação da Páscoa. In: Missal Romano. Trad. Portuguesa da 2a edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9 ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.275.

[4] Cf. João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 1.

[5] Cf. Suma Teológica. III, q. 44, a. 3, ad. 1.

[6] Cf. Código de Direito Canônico, can. 573.

[7] Gambari,  Elio. La vida común, apud Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 12 ed. Madrid: B.A.C, 2007, p. 861.

[8] Cf. Sartre Santos, Eutimio. La vita religiosa nella storia della Chiesa e della società. Milano: Ancora, 1997, p. 19.

[9] Gambari,  Elio. La vida común,  apud Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[10] Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[11] João Paulo II. Encontro do Santo Padre com as religiosas. n. 3. Paris, 31 maio 1980.

[12] João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 13.

%d blogueiros gostam disto: