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A obediência II – (continuação)

Jesus fala pelos lábios do superior – 

Durante a nossa existência, os superiores que nos governam podem ir se sucedendo e, por conseguinte, apresentando diferenças de temperamento, virtude, capacidades, etc. Basta dizer que são humanos. Entretanto, essa variedade não afeta à obediência de quem abraça verdadeiramente a vida consagrada, pois ao ingressar nela, o religioso visa cumprir a vontade de Deus, a qual lhe determina obedecer em tudo as autoridades, sempre e quando não lhe ordenem algo que comporte pecado.

Desde a patrística, muitos escritores de espiritualidade e fundadores, na composição das regras monacais, sempre aplicaram esta passagem do Evangelho aos superiores religiosos: “Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita” (Lc 10, 16).[i] Assim, um súbdito não tem muitos superiores, mas somente um: “Jesus Cristo que muda de nome e de fisionomia, mas sempre é Jesus Cristo”.[ii]

Uma analogia proposta por Santo Inácio de Loyola e retomada pelo Beato Columba Marmion,[iii] pode deixar-nos atônitos, ao meditá-la seriamente. Com efeito, o que fazemos ao ajoelhar-nos diante de uma Hóstia consagrada, exposta num ostensório? Por acaso adoramos um pedaço de pão? Claro que não! A luz inequívoca da Fé ilumina a nossa inteligência para crermos nas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, através das quais Ele mesmo nos revelou estar ali a sua presença real, oculta sob as aparências de pão. Ora, a figura de um superior é equiparada, analogamente e sob certo aspecto, a esse sublime mistério, pois “quem obedece, por meio de uma voz humana, está atendendo à voz divina de Jesus Cristo”.[iv]

Caso alguns espíritos débeis ainda se abalem face às possíveis ou reais imperfeições dos seus superiores, Nosso Senhor teve a delicadeza de dar-lhes o conselho acertado, ao comentar a autoridade dos escribas e fariseus: “Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem” (Mt 23, 3). “Mesmo assim, ver Cristo no superior, quando as suas decisões nos agradam, seu talento e afabilidade conquistam nossa simpatia, é algo fácil. Mas, continuar a ver Cristo no superior, quando os seus defeitos, preconceitos e ainda desatinos saltam aos nossos olhos, é muito mais difícil. É preciso ter uma Fé viva e robusta para encontrar a pedra preciosa da vontade de Deus, em meio à ganga das deficiências e misérias humanas que a possam envolver”.[v] Pretender obedecer apenas a “pessoas perfeitas e totalmente irrepreensíveis, equivaleria a nunca querer obedecer”.[vi]

Obedecer em todas as circunstâncias

A prática da obediência se estende não somente a um superior, mas também a todos os “subalternos revestidos de uma parte da sua autoridade”,[vii] os quais exercem qualquer tipo de direção, estável ou transitória, devido às diversas funções numa comunidade. Devemos obedecê-los, “ainda quando sejam jovens, sem talento, sem experiência, de condição humilde e de exterior desagradável, rudes e exigentes, inconstantes e caprichosos, pouco edificantes, e, sob muitos aspectos, os últimos da casa”,[viii] pois, na verdadeira obediência, “não devemos olhar para quem agimos, mas sim, por quem agimos”,[ix] ou seja, por Cristo. Quem tem desregrado amor a si mesmo, facilmente os acusará “de extravagância, injustiça, cólera, despotismo, e cultivará a amizade com espíritos mal intencionados, cuja inveja exerce maligna influência”.[x]

A virtude da obediência pede ainda ser praticada “na saúde e na doença, em todas as condições e em todas as circunstâncias, como na própria velhice, quando o jugo da obediência pode se apresentar mais pesado; por mais que se tenham prestado os serviços mais relevantes; ainda quando se tenham desempenhado os mais importantes cargos; é preciso sempre conservar-se simples, submisso e cândido como uma criança, nas mãos da obediência”.[xi] As almas verdadeiramente amantes da virtude “não se contentam em obedecer exteriormente, mas interiormente subjugam a sua vontade ainda nas coisas mais trabalhosas, contrárias ao seu modo de ser, e o fazem de coração, sem queixar-se, felizes de poderem assemelhar-se mais perfeitamente a seu divino modelo”.[xii] Nunca procuram manifestar ao superior, velada ou declaradamente, as preferências que têm por isto ou por aquilo, a fim de receberem determinadas incumbências. Quem assim age, não faz senão enganar-se a si mesmo, porque – como disse São Bernardo – “nessa ocasião não é ele que obedece a seu superior, mas é o superior quem lhe obedece”.[xiii]

O mesmo santo ainda adverte: “O verdadeiro obediente não conhece contemporizações, tem horror de deixar algo para amanhã; não entende demoras, adianta-se à ordem; está com os olhos fixos, o ouvido atento, a língua pronta para falar, as mãos dispostas a trabalhar, os pés prontos para correr; está inteiramente recolhido para compreender sempre aquilo que lhe é mandado”.[xiv] A constância é um dos seus maiores méritos, pois “executar com prazer algo mandado uma só vez, e quando o achamos agradável, custa muito pouco; mas quando nos dizem ‘farás sempre isto, enquanto viverdes’– afirma São Francisco de Sales –, ali está a virtude”.[xv] O religioso não faz ideia de quão próxima lhe é a santidade. Ela – dizia São Felipe Neri – é nada mais do que sacrificar “quatro dedos de testa, ou seja, mortificar a própria vontade”.[xvi]

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[i] Cf. Espinosa Polit. Manuel María. La obediencia perfecta: comentario a la carta de la obediencia de San Ignacio de Loyola. 2 ed. México: Jus, 1961, p. 9.

[ii] Longhaye, Georges. Retraite annuelle de huit jours: d’après Les Exercices de Saint Ignace. 3 ed. Paris: Casterman, 1925, p. 642.

[iii] Cf. Marmion, Columba. Le Christ, idéal du moine: conférences spirituelles sur la vie monastique et religieuse. Bélgica: Maredsous, 1947, v. 1, p. 132.

[iv] Gilleman, Gérard. L’obéissance dans notre vie divine. Bélgica: Christus Rex, 1955, (n. 8).

[v] Espinosa Polit. Op. Cit., p. 11.

[vi] Judde, Claudio. Palestra, apud Espinosa Polit. Op. Cit., p. 11-12.

[vii] Royo Marín, Antonio. La vida religiosa. 2 ed. Madrid: B.A.C, 1968, p. 368.

[viii] Royo Marín. Loc. Cit.

[ix] San Ignacio de Loyola, Carta de la obediencia. 26 mar. 1553, apud Espinosa Polit. Op. Cit., p. 7.

[x] Royo Marín. Op. Cit., p. 368.

[xi] Royo Marín. Loc. Cit.

[xii] Tanquerey, Adolphe. Compendio de Teología Ascética y Mística. Traducción de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960, p. 683.

[xiii] São Bernardo de claraval. Sermon XXXV, n. 4. Disponível em: <http://membres.lycos.fr/abbayestbenoit>.

[xiv] Idem, Sermon XLI, n. 7. Disponível em: <http://membres.lycos.fr/abbayestbenoit>.

[xv] São Francisco de Sales. Pláticas espirituales. c. XI, apud Tanquerey. Op. Cit., p. 687.

[xvi] Apud Santo Afonso Maria de Ligório. A selva: dignidade e deveres do Sacerdote. Tradução de Pe. Martinho. Porto: Fonseca, 1928, p. 222.

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A Obediência I

Deus é a autoridade máxima do Universo e, portanto, não deve obediência a nenhum outro ser inteligente. Sem embargo, nem Ele quis privar-se da prática dessa admirável virtude: o Verbo eterno, ao ocultar-se sob os véus de uma carne mortal, tornou-se dependente, sob certo aspecto, das outras duas Pessoas Trinitárias. Vindo à Terra, deixou-nos seu comovedor exemplo ao sujeitar-se à Santíssima Virgem e a São José, como sinal da sua obediência a Deus Pai,[i] a qual atingiria o ápice nas vésperas da Paixão: “Pai, se é de teu agrado, afasta de Mim este cálice! Porém, não se faça a minha vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42).

É sabido que, para nos redimir, teria bastado apenas uma gota de seu preciosíssimo Sangue. Entretanto, o amor divino excedia qualquer limite: no seio da Trindade fora decretada a consumação completa do holocausto do Filho; a Cruz deveria ser hasteada sobre o Calvário e carregar o Cordeiro imolado que assumiu sobre Si todas as nossas iniquidades. Como qualificar esse ato de obediência? Somente um adjetivo parece descrevê-lo por inteiro: divino. Cristo, “tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8), submeteu-se inclusive às autoridades que o condenaram, embora tivesse pleno poder para defender-se, como asseverou a São Pedro: “Crês tu que não posso invocar meu Pai, e Ele não me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26, 53).

Quem ousaria, pois, ao abraçar os conselhos evangélicos, procurar outro modelo que não seja Cristo? Contudo, alguém pode dizer: “Eu me consagrei a Deus e a Ele devo obediência, mas como hei de conhecer a sua vontade, se não O vejo?”. A resposta é muito simples: “a obediência do religioso descansa sobre o fundamento sobrenatural da Fé, a qual reconhece em todo superior legítimo, qualquer que ele seja, o lugar-tenente ou vigário de Cristo”.[ii] Acatando as ordens recebidas, quem obedece pode estar certo de cumprir a vontade divina. A objeção, porém, continua: “E quando o superior cai em erro, o Ser infinitamente perfeito também me manda errar? Será mesmo que a vontade divina se identifica com a do superior?”.

Deus se adapta à vontade do superior

Há inúmeros episódios na História da Igreja que permitem comprovar o alto grau do amor de Deus pela virtude da obediência. Tomemos alguns da vida de Santa Margarida Maria Alacoque, para encontrar a resposta ao problema levantado. A famosa vidente do Sagrado Coração de Jesus tornou-se religiosa visitandina no ano de 1671 e, como sói acontecer com os grandes místicos, aqueles que os acompanham de perto correm o risco de desprezá-los ou até ridicularizá-los pelos extraordinários dons de que são objeto, pois estes costumam apresentar-se sob o véu de uma humildade profunda. Foi o caso de Santa Margarida: devido à sua aparente incompetência na vida comunitária, viu-se muito perseguida pela superiora do convento, a qual, duvidando das aparições, teve a empáfia de ordenar-lhe que pedisse a seu Jesus a tornasse mais útil.

A ordem foi cumprida e a resposta foi a seguinte: “Eu te farei mais útil para a religião do que ela pensa, mas de uma maneira somente conhecida por Mim. Doravante, adaptarei as minhas graças ao espírito da regra, à vontade de tuas superioras e à tua debilidade, de sorte que deverás ter por suspeito tudo quanto te afaste da observância exímia da regra, a qual Eu quero que prefiras a qualquer outro ato de piedade. Ademais, verei com gosto que anteponhas a vontade de tua superiora à minha, quando ela te proíbe fazer aquilo que Eu tiver ordenado. Deixa-a proceder como quiser. Eu saberei executar os meus desígnios, ainda por caminhos que pareçam contraditórios”.[iii]

Quem pode hesitar, depois destas palavras, em reconhecer que a vontade divina se encontra oculta na vontade do superior? Caso restem dúvidas, acompanhemos mais algumas verdades que transbordaram do Sagrado Coração de Jesus. Em certa ocasião, Ele repreendeu a sua vidente por prescindir de permissão superior para mortificar-se mais do que era permitido pela regra: “Enganas-te pensando agradar-Me com essas ações e mortificações que partem da tua própria vontade, ignorando a da superiora, antes do que submetendo-se a ela. Eu rejeito isso como frutos corrompidos, pois Me causam horror numa alma religiosa. Agrada-Me mais que tenhas comodidades por obediência, do que ver-te oprimida por austeridades e jejuns, por vontade própria”.[iv] São Francisco de Sales, o fundador da ordem, apareceu também a Santa Margarida e lhe disse com severidade: “Pensas poder agradar a Deus sobrepondo-te aos limites da obediência, que é o fundamento desta Congregação, e não as austeridades?”.[v] E, por último, bastou esta afirmação de Nosso Senhor para ela nunca mais transgredir qualquer regra: “O que fizeste até aqui é para Mim, o que estás fazendo agora é para o demônio”.[vi]

Invariavelmente, onde não há pecado, Deus corrobora a autoridade de um superior, pois Ele ama a ordem que pôs no Universo. Ao cumprirmos uma norma, errônea ao nosso parecer, estaremos obedecendo, mais do que a este ou àquele homem, a uma disposição divina, que é respeitar a hierarquia humana desejada por Deus. Ninguém tem o direito de se revoltar contra uma autoridade, sob o pretexto de estar fazendo algo mais razoável à ordem recebida, pois “aquele que resiste à autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus, e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação” (Rom 13, 2). Devemos ser submissos “a toda autoridade humana” (1Pd 2, 13), e não somente àquelas que julgamos serem boas e justas, “porque não há autoridade que não venha de Deus” (Rom 13, 1).

Somente existe um caso no qual um súbdito nunca deve obedecer: quando lhe ordenam expressamente cometer qualquer pecado, ainda que venial. Foi o que sucedeu, por exemplo, aos Apóstolos diante das autoridades religiosas da época. Ao serem forçados a ocultar a verdade revelada por Deus, guardando silêncio a respeito do nome de Jesus, São Pedro e São João responderam perante o sinédrio: “Julgai vós mesmos se é justo diante de Deus que obedeçamos a vós mais do que a Ele.” (At 4, 19). Nesse momento, calar talvez tivesse sido o maior pecado de omissão em toda a História, pois nenhuma autoridade ultrapassa o infinito e imutável poder de Deus sobre as suas criaturas. Assim, ninguém está obrigado, em consciência, a obedecer algo que Ele condena. O próprio São Paulo – portador do poder divino a que grau! – esclarece, dirigindo-se aos de Corinto, ser a “autoridade que o Senhor nos deu, para vossa edificação e não para vossa destruição” (2 Cor 10, 8), e não há pior ruína do que ofender a Deus violando qualquer ponto das suas divinas palavras. Portanto, sempre se deve obedecer um superior, excetuados os casos nos quais é patente a infração à vontade de Deus, revelada nas Escrituras e na Sagrada Tradição.

Continua num próximo post…

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[i] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 532.

[ii] Espinosa Polit, Manuel María. La obediencia perfecta: comentario a la carta de la obediencia de San Ignacio de Loyola. 2 ed. México: Jus, 1961. p. 9.

[iii] I. G. Vida de la Beata Margarita María de Alacoque: religiosa de la Visitación de Santa María, orden de San Francisco de Sales, de quien se sirvió para establecer la devoción al Sagrado Corazón de Jesús. Barcelona: Librería de Francisco Rosal, 1864. p. 52-53.

[iv] Idem, p. 66.

[v] Idem, p. 46.

[vi] Idem, p. 66.

 

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Os Conselhos Evangélicos

Há, nos Evangelhos, palavras do Divino Mestre que se destinam ao comum dos homens, como mandatos a serem cumpridos, sem exceção. No entanto, em outras ocasiões, Nosso Senhor dirige-se a grupos mais restritos, como aos seus discípulos, aconselhando paternalmente modos de viver para aqueles que O quisessem seguir num caminho excepcional, à procura de maior perfeição. Eis o que conhecemos como Conselhos Evangélicos: uma vocação para configurar-se mais plenamente ao próprio exemplo de vida dado pelo Filho de Deus.

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No Paraíso, Deus concedera ao homem domínio perfeito sobre toda a natureza, a começar pelo seu próprio corpo, pois nenhum instinto escapava ao controle da vontade governada pela inteligência, a qual era iluminada pela Fé. Enquanto permanecesse obediente ao seu Criador, ele conservaria esse equilíbrio – chamado dom de integridade – que somente um pecado de orgulho poderia arrebatar de seu ser, precisamente por não ter em nada desregradas as inclinações inferiores.[1]

Nossos primeiros pais pecaram e, como castigo pela transgressão ao preceito divino, a Criação passou igualmente a desobedecer-lhes. Assim eles perderam também aquela harmonia perfeita do estado de inocência. Acenderam-se três movimentos desordenados no interior dos homens: “a concupiscência[2] da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 Jo 2, 16), ou seja, a tendência desregrada para os prazeres dos sentidos, para o apego desmedido aos bens terrenos e para satisfazer os delírios da vontade própria desvirtuada.

Nessa trágica situação, valeu-nos a misericórdia divina que enviou à Terra o seu próprio Filho, a fim de resgatar nossa decaída condição. Dádiva altíssima e insuperável, pela qual a Santa Igreja não receia exclamar: “Ó feliz culpa que nos mereceu tal e tão grande Redentor!”.[3] Sim, o próprio Criador do Universo assumiu nossa carne, para nela curar as chagas abertas por Adão. Ao morrer no Calvário, Cristo devolveu-nos copiosamente a vida sobrenatural, pois “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20), e, por meio da Igreja e dos Sacramentos nascidos de seu flanco, Ele deposita em nossas almas a semente da Graça, a qual se desenvolve de diversas maneiras, conforme a vocação à qual se destine cada batizado.

Os frutos da Redenção

Infinitos e universais são os frutos nascidos da sagrada árvore da Cruz. Porém, os homens não se beneficiam deles por igual, como ensina a parábola do semeador. Além das sementes que morreram sem nada produzir, três são as categorias das plantadas em terreno fértil, as quais igualmente tiveram de morrer, mas deram frutos, rendendo quantidades diferentes: “uma cem, outra sessenta e outra trinta” (Mt 13, 8). Jesus, nessa ocasião, explicou aos seus discípulos estar referindo-se aos fiéis que ouvem e observam a palavra de Deus (Cf. Mt 13, 23), morrendo para o pecado e para si mesmos. Contudo, surge uma pergunta: a quem caberá render o cem por um, o imolar-se por completo?

O caminho para alcançar a salvação é a observância de todos os preceitos divinos, resumidos assim por Nosso Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento (Cf. Dt 6, 5); e a teu próximo como a ti mesmo (Cf. Lv 19, 18)” (Lc 10, 27). Eles são obrigatórios para todo católico, em qualquer estado de vida, a fim de perseverar na Graça Divina e poder entrar na Bem-aventurança eterna. Porém, um número restrito de batizados recebe do Divino Mestre um convite excepcional para não se restringir aos meios habituais. Chama-os a renunciar a tudo o que possuem (Cf. Lc 14, 33), para trilhar um caminho especial de maior perfeição, vivendo já nesta Terra “como os Anjos do Céu” (Mt 22, 30). Esses são conhecidos na Igreja Católica com o nome de “religiosos”, os quais, ao seguirem mais de perto Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo “caminho apertado” e pela “porta estreita” (Cf. Mt 7, 14), experimentam quão  copiosa é a Redenção que n’Ele se encontra (Cf. Sl 129, 7).[4]

A vocação religiosa

Na Antiga Aliança, a vocação consagrada era rara, pois quem não tinha descendência facilmente via-se discriminado pelos demais, ao estar privado de ser ancestral do Messias. Além do mais, as posses materiais, em especial a de terras, eram consideradas como um sinal de predileção e benquerença divinas. O advento de Cristo, porém, reverteu essa situação: seu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36) e realiza-se no interior dos corações! Ele mesmo afirmou serem seus familiares aqueles “que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 8, 21). Assim, por meio de seu divino exemplo de desapego às coisas desta Terra, abriu-se nova e esplêndida via de santificação.

Em certa ocasião, estando na Judeia, um jovem aproximou-se d’Ele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?”. Respondeu Jesus: “Observa os Mandamentos”. Disse-Lhe o jovem: “Já os tenho observado desde a minha infância. O que ainda me falta?” Cristo, com grande amor, fixou nele o olhar e acrescentou: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois vem e segue-Me!”. O jovem foi-se cheio de tristeza, pois era muito rico e não queria acatar o convite do Mestre (Cf. Mc 10, 17. 20; Mt 19, 18. 21). “Jesus disse, então, aos seus discípulos: Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no Reino dos céus! […] Pedro então, tomando a palavra, disse-Lhe: Eis que deixamos tudo para Te seguir; que haverá então para nós? Respondeu Jesus: Em verdade vos declaro: […] todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19, 23. 27-29).

Com efeito, donde provém essa força para tudo deixar e configurar-se plenamente com Cristo, pobre, casto e obediente? Ela provém da voz do próprio Deus encarnado, capaz de incutir a Graça nas almas: “Segue-Me!”. Esse foi o convite dirigido a muitos de seus discípulos, como a Filipe (Cf. Jo 1, 43) e a Mateus (Mt 9, 9). Para outros terá sido por meio de um gesto ou talvez um olhar, mas era sempre a divina vontade que, almejando um assentimento ao chamado, impelia interiormente seus eleitos: “Não fostes vós que Me escolhestes, mas Eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).

À semelhança do moço rico, Jesus olha com amor seus escolhidos e aconselhando paternalmente: “Se quereis ser perfeitos, vinde e segui-Me!” (Cf. Mt 19, 21), parece dizer-lhes: “Vinde para serdes transformados em outros Eu mesmo!”. Magnífica promessa para aqueles que se imolam por completo nas mãos de Nosso Senhor, deixam tudo e O seguem! Tornam-se sementes de fruto abundante, pois, ao ouvirem e observarem com maior perfeição os Conselhos Evangélicos de Pobreza, Castidade e Obediência, subtraem-se à herança do pecado, morrendo para a tríplice concupiscência. Ao renunciarem aos seus bens, entregam a Deus a capacidade de possuir, praticando com integridade a virtude da pureza, consagram-Lhe seus corpos e acatando com alegria as determinações de seus superiores, submetem-Lhe a inteligência e a vontade.

Essa vocação constitui um milagre maior do que fazer um cego ver ou um paralítico caminhar, pois visa diretamente a transformação de uma alma – finalidade última inclusive das curas corporais operadas por Cristo –,[5] elevando-a a um estado de vida pelo qual subjuga o procedimento natural das leis da carne, prenunciando assim a Bem-aventurança Celeste.[6] Se o religioso corresponde a esse convite divino, perseverando na contínua procura da perfeição, conquista grandíssimo prêmio na Eternidade!

A vida em comunidade

Entretanto, a realização dessa entrega não é algo abstrato. Na História da Igreja surgiram inúmeros meios para torná-la efetiva, sendo o mais difundido e apropriado dentre eles a vida em comunidade, pois “é onde os conselhos evangélicos de pobreza e obediência recebem aplicação e realização concretas”.[7] Devido aos crescentes perigos do mundo, às suas maléficas solicitações e conforme as necessidades da Esposa Mística de Cristo, a Santa Igreja, o Espírito Santo suscitou, ao longo dos tempos, diversos fundadores de famílias espirituais que congregam em suas fileiras vocações consagradas, as quais se dedicam, em primeiro lugar, à mútua santificação, segundo carisma próprio da fundação.[8]

Ao ingressar numa comunidade, “guiado pelos superiores, ajudado pelos seus irmãos, sustentado pelas regras, as quais determinam até os mínimos detalhes aquilo que deve fazer, o religioso sentirá a realidade do Corpo Místico de Cristo”.[9] Assim, “quando ele sem verdadeira e autêntica necessidade consegue subtrair-se habilmente de algum aspecto da vida comunitária para se entregar a seus próprios gostos, comodidades ou caprichos, ‘autoexcomunga-se’ da corrente de graças vinculada por Deus àquela vida comunitária. Seu desventurado engenho acarretou-lhe uma perda espiritual incalculável”.[10]

Sim, enorme é o prejuízo dos religiosos que se afastam em algo do amor à perfeição… Quantos Santos eles têm como exemplos a imitarem! Muito mais, eles têm o próprio Deus encarnado, primeiro e exímio praticante dos seus divinos conselhos: quem tudo possuía, despojou-se da sua altíssima condição, para nascer numa gruta! São Paulo no-lo recorda: “Vós conheceis a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, fez-se pobre, a fim de vos enriquecer mediante a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). Também “a castidade religiosa […] é verdadeiramente querer ser como Cristo; todas as razões que se podem apresentar esvanecem-se diante desta razão essencial: Jesus era puro”![11] E, finalmente, “o conselho evangélico de obediência é o chamado que provém da obediência de Cristo ‘até a morte’ (Fl 2, 8)”,[12] pois, “assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, pela obediência de um só todos se tornarão justos” (Rm 5, 19)!

Texto: Sebastián Correa Velásquez


[1] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 89, a. 3, ad. 3.

[2] A doutrina católica entende por concupiscência a tendência para o pecado, portanto, toda inclinação que contrarie o reto ditame da razão iluminada pela Fé. “O Apóstolo Paulo a identifica com a revolta que a carne provoca contra o ‘espírito’. Provém da desobediência do primeiro pecado. Transtorna as faculdades morais do homem e, sem ser pecado em si mesma, inclina-o a cometê-lo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2515).

[3] Vigília Pascal: Proclamação da Páscoa. In: Missal Romano. Trad. Portuguesa da 2a edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9 ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.275.

[4] Cf. João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 1.

[5] Cf. Suma Teológica. III, q. 44, a. 3, ad. 1.

[6] Cf. Código de Direito Canônico, can. 573.

[7] Gambari,  Elio. La vida común, apud Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 12 ed. Madrid: B.A.C, 2007, p. 861.

[8] Cf. Sartre Santos, Eutimio. La vita religiosa nella storia della Chiesa e della società. Milano: Ancora, 1997, p. 19.

[9] Gambari,  Elio. La vida común,  apud Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[10] Royo Marín. Op. Cit., p. 862.

[11] João Paulo II. Encontro do Santo Padre com as religiosas. n. 3. Paris, 31 maio 1980.

[12] João Paulo II. Exortação apostólica Redemptionem Donum. n. 13.

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