O Pai Nosso: Lembrança do Curso de Férias II
Continuamos compartindo aos leitores o texto, já iniciado em anterior post, do livreto-lembrança que foi presenteado aos participantes do último Curso de Férias, intitulado: “A Oração”.
♦ A antiguidade pagã concebeu inúmeras divindades… Desde o sol até um ressequido tronco de árvore, uma besta selvagem ou um fantasioso monstro, tudo era endeusado e em sua honra se ofereciam até os mais absurdos sacrifícios humanos. O homem recorria, pois, aos estranhos desvarios da sua imaginação para satisfazer a necessidade instintiva de remontar à causa primeira do Universo. Entretanto, em meio a tantos deuses, não se conhece algum cuja representação tenha sido a de um bom pai, realidade tão simples, que, talvez por isso mesmo, nem fosse considerada. Mas era essa a imagem mais completa que, de seu verdadeiro Criador, o homem naturalmente poderia conceber.
♦ Antigo Testamento – Mesmo o povo eleito, quando invocava oralmente seu Criador, usava a expressão “Adonai” (Senhor), substituindo o nome revelado por Deus a Moisés (“yhwh”, Javé), o qual, após o exílio da Babilônia, não podia ser pronunciado. Por outro lado, a utilização do termo “pai”, em relação a Deus, aparece escrito em algumas passagens do Antigo Testamento, em três sentidos: a) Deus é chamado “Pai” enquanto constituiu para si um povo e uma linhagem real;[1] b) Deus é comparado a um pai;[2] c) em tempos messiânicos, Deus será considerado verdadeiramente um Pai.[3] Assim, tais referências não deixam de ser prenúncios em relação à verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo iria claramente revelar: a adoção sobrenatural, a participação dos homens na própria natureza divina.[4]
♦ Novo Testamento – “Eis como deveis rezar: Pai Nosso que estais no Céu…” (Mt 6, 9). Mais de quatro mil anos tinham se passado, no início dos quais a humanidade provocara a sua própria “orfandade” por haver pecado. Tão consoladora expressão – “Pai Nosso” – só poderia brotar, com toda a propriedade, dos lábios do Deus encarnado que quis assumir a nossa carne e, em nosso meio, dizer: “Filhinhos! Doravante, chamai-me novamente de Pai!”. Cristo fazia uma revelação inaudita: “A todos aqueles que O receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12), “e nós o somos de fato” (1 Jo 3, 1)!
Contudo, não todos quiseram receber essa altíssima dádiva. Os seus inimigos “procuravam, com maior ardor, tirar-Lhe a vida, porque […] afirmava que Deus era seu Pai” (Jo 5, 18). A Igreja, durante os primeiros séculos da sua existência, teve de transmitir de modo cauteloso a oração preceituada pelo Senhor, pois, tanto nas sinagogas quanto entre os pagãos, era uma doutrina inaceitável. Assim, o Pai Nosso tornou-se um verdadeiro sinal de reconhecimento, o primeiro símbolo da Fé para alguém identificar-se cristão, nessa época de perseguições. E, até hoje, nas palavras prévias à sua recitação durante a Santa Missa, transparece esse caráter de proclamação de uma verdade que fora impugnada pelo mundo: “obedientes à palavra do Salvador e formados por seu divino ensinamento, ousamos dizer…”.
♦ O Pai Nosso – A Oração do Senhor, ou Dominical (do latim Dominus), é perfeita. Ela é um “resumo de todo o Evangelho”[5] e serviu de guia para a piedade dos católicos de todos os tempos. “Não há nenhum aspecto das nossas preces ou orações que não esteja compreendido nesse compêndio da doutrina celestial”.[6] As suas petições são como as sete cores que conformam o arco-íris de uma nova aliança entre o Céu e a Terra, um caminho luminoso que nos conduz diretamente aos tesouros da misericórdia divina. As três primeiras súplicas exercitam no cristão as virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade), porque se dirigem diretamente a Deus: “o vosso nome, o vosso Reino e a vossa vontade”; as quatro restantes imploram, no seu conjunto, proteção e auxílio divinos na prática das virtudes cardeais (Justiça, Temperança, Fortaleza e Prudência), e constituem propriamente o apelo dos filhos a seu divino Pai: “dai-nos, perdoai-nos, não nos deixeis cair e livrai-nos”.
Na Oração Dominical, antes dos pedidos, invocamos com fé a quem eles se dirigem – “Pai Nosso, que estais no Céu” – e em seguida os fazemos:
1o “Santificado seja o vosso nome” – Em primeiro lugar, pedimos o mais importante, ou seja, a glória de Deus, que Ele seja conhecido e reverenciado por todos.
2o “Venha a nós o vosso Reino” – O nosso segundo maior desejo é que todos possamos participar da glória eterna e, para isso, impulsionados pela esperança, pedimos, o quanto antes, a segunda vinda de Cristo, a fim de que Ele reine definitivamente e a sua Graça habite para sempre no interior dos fiéis.
3o “Seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu” – Mas, para que os homens mereçam entrar na glória celestial, pedimos que todos observem os Mandamentos da Lei de Deus.
4o “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” – Nesta súplica, não pedimos somente o pão que um dia fenece, ou seja, os meios necessários para o nosso sustento material, mas, uma vez que devemos praticar a virtude da Justiça, cumprindo em tudo a vontade de Deus, só o conseguiremos por meio da assistência diária de sua Graça, especialmente ao receber o “nosso” Pão da Vida: a Eucaristia.
5o “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” – Imploramos-Lhe perdão por todas as ocasiões nas quais trocamos a sua amizade pelo amor desregrado a alguma criatura, cometendo algum pecado. E, como penhor para sermos atendidos, oferecemos-lhe o sacrifício do nosso orgulho, perdoando aqueles a quem Ele mesmo está disposto a perdoar.
6o “E não nos deixeis cair em tentação” – Tendo reconhecido a nossa debilidade, pedimos-Lhe a fortaleza necessária para não ofendê-Lo mais e que a vitória sobre as tentações aumente a nossa firmeza no bem.
7o “Mas livrai-nos do mal” – A Oração do Senhor encerra-se com uma cláusula que nos recorda não ter nenhum poder sobre nós o Maligno, se não lhe é dada permissão do alto. E são, precisamente, os nossos pecados os que arrancam essa autorização divina, pela qual Deus permite sermos castigados pelo demônio, com tentações e tormentos, os quais servem para pagarmos, em parte, a pena devida às nossas faltas. Por isso, nesta súplica, também pedimos para ser libertos do pecado, a fim de que o autor do mal não possa nos aprisionar com os seus laços.
♦ Quem conforma a sua vida segundo os princípios contidos no Pai Nosso é um perfeito cristão. Esperemos não passe um dia da nossa existência sem o recitarmos! Ele já nos acompanha desde o começo da nossa caminhada rumo à salvação, quando no Batismo os nossos padrinhos o rezaram, e será ele que nos despedirá deste mundo, quando o sacerdote o recitar enquanto o nosso corpo desce para a sua última morada.
Texto: Sebastián Correa Velásquez
[1] • “É assim que agradeceis ao Senhor, povo frívolo e insensato? Não é ele teu Pai, teu Criador, que te fez e te estabeleceu?” (Dt 32, 6) • “Assim fala o Senhor: Israel é meu filho primogênito” (Ex 4, 22) • Deus, referindo-se ao filho do rei Davi, diz: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2 Sm 7, 14).
[2] • “Tratá-los-ei benignamente como um pai trata com indulgência o filho que o serve” (Ml 3, 17) • “Como um pai tem piedade de seus filhos, assim o Senhor tem compaixão dos que o temem” (Sl 102, 13) • “A estes provastes como um pai que corrige, mas a outros provastes como um rei severo que condena” (Sb 11, 10).
[3] • “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; […] e ele se chama: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz” (Is 9, 5) • “Que lugar, dissera eu, vou conceder-te entre meus filhos […]? E eu acrescentara: Chamar-me-ás: meu pai, e não te desviarás de mim” (Jr 3, 19) • “Cerquemos o justo […]. Ele se gaba de conhecer a Deus, e se chama a si mesmo filho do Senhor! […] e gloria-se de ter Deus por pai” (Sb 2, 12-13. 16).
[4] Cf. Ternant, Paul. Pais & Pai. In: Léon-Dufour, Xavier (dir.). Vocabulário de Teologia Bíblica. 10 ed. Tradução de Simão Voigt. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 691-699.
[5] Tertuliano, De oratione, I, 6.
[6] São Cipriano. De oratione dominica. 9.